terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Ruth de Souza: uma grande estrela da dramaturgia brasileira

Valquíria Tenório é professora universitária,
socióloga e pesquisadora de cultura e
história na temática etnicorracial,
escreve neste espaço às terças.

A grande atriz Ruth de Souza completou 94 anos de vida e 70 anos de carreira em 2015. Não tem como não escrever sobre essa grande estrela da dramaturgia brasileira. A trajetória dela é belíssima e precisa ser mais conhecida. Em tempos de crescente número de ataques racistas nas mídias sociais a atrizes e jornalistas negras em evidente ascensão em suas carreiras é muito válido conhecer a história daquelas que foram as precursoras, aquelas que atuaram para a abertura de espaços às gerações futuras. Saber o quanto elas sofreram de preconceito e que esse preconceito ainda permanece mesmo diante de diversos avanços, não pode servir apenas para lamentação, mas sim para evidenciar uma situação que persiste, para cobrarmos e agirmos por mudanças. Na análise da trajetória de Ruth de Souza é possível perceber que ainda persistem muitas desigualdades nesse espaço, sobra talento e faltam papéis para essas mulheres.
  
Eu tenho trabalhado a questão invisibilização/visibilização da população negra na escrita da história, pensado muito sobre como essa relação se concretiza, o que fica registrado e o que não fica na história. Por isso, se escrevo hoje sobre a atriz Ruth de Souza é porque eu gostaria de atuar na chave visibilização, percebendo que ela sofre com a invisibilização duplamente por ser mulher e negra ou negra e mulher, qualquer alteração na ordem das palavras não altera o resultado, desde que elas continuem juntas, obviamente, o que estou querendo dizer é que ser mulher é ser suscetível a sofrer invisibilização e ser negra também. Fico me perguntando, se Ruth fosse uma mulher branca a riqueza de sua trajetória teria outro destaque e atenção? Os seus 70 anos de carreira seriam motivo de grandes celebrações e comemorações pelos espaços por onde ela trabalhou. O que vocês acham? 
Ruth de Souza em depoimento para Júlio Claudio da Silva, doutor em história social pela Universidade Federal Fluminense que lançou em novembro passado o livro “Uma Estrela Negra no Teatro Brasileiro: Relações Raciais e de Gênero nas Memórias de Ruth de Souza” afirma ter sido a primeira atriz negra no teatro brasileiro. Ela iniciou sua carreira no Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1945 e relata que “até então nas peças, nos filmes, o negro era pintado... O branco era pintado de preto pra fazer os personagens negros. E aí foi quando houve um movimento, houve um espanto muito grande, um movimento... imagina os negros estão fazendo O’Neill, estão fazendo Shakespeare. É um negócio estranhíssimo. Foi um espanto para os brancos que não davam oportunidade...”. Interessante notar que estamos falando dos anos de 1940 e ainda hoje 2015 os artistas negros enfrentam preconceito para a conquista de papéis. Recentemente, houve uma polêmica envolvendo uma agência recrutadora de atores para uma série brasileira que emitiu uma chamada de seleção com teor racista. 
O depoimento da atriz é sintomático da situação vivida por aquelas e aqueles que buscavam oportunidades na dramaturgia brasileira, as oportunidades eram raras e, muitas vezes, restritas aos papéis estereotipados e caricatos. A atriz recebeu uma bolsa da Fundação Rockefeller para estudar nos Estados Unidos entre 1951 e 1952. Parte dos estudos foi realizada no Karamu House, criado em 1915, em Cleveland, um centro de artes comprometido com a celebração, promoção e incentivo da cultura Afro-Americana. Dessa maneira, Ruth de Souza esteve em contato também com a realidade racial nos EUA e atuou no estabelecimento de contato entre editor de um importante jornal daquele país e o Teatro Experimental do Negro que também possuía um jornal o “Quilombo”. 
Ruth estreou no cinema em 1948 em uma adaptação de romance de Jorge Amado, seguiu atuando em diversos filmes e em 1954, torna-se a primeira atriz brasileira a ser indicada ao Leão de Ouro, no Festival de Veneza. Atuou em diversas peças de teatro, radionovelas e telenovelas. Em 1969, foi a primeira atriz negra protagonista de novela na Cabana do Pai Tomás. A atriz mencionou em entrevista recente ter sofrido preconceito, o público reclamou de sua participação sendo seu nome retirado dos créditos. Ruth de Souza tem uma carreira brilhante, uma atriz completa, com dezenas de trabalhos no cinema, televisão e teatro, com papéis que rompiam o lugar dedicado ao negro, segundo ela própria mencionou, era espantoso para a sociedade da época uma jovem atriz negra fazendo Shakespeare. 
Quando questionada sobre os casos recentes de ataques racistas a atrizes negras nas redes sociais se posicionou firmemente apoiando o fato delas denunciarem o fato e procurarem a polícia para que sejam encontrados os responsáveis pelos ataques e que eles sejam punidos. Eu continuo me perguntando por que essa grande atriz é pouco ou nada reverenciada, homenageada como outras atrizes do mesmo ou menor calibre?