terça-feira, 18 de abril de 2017

Vivências e Aprendizados

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

               Há momentos em que ficamos desmotivados, cansados, tristes em sermos professores, educadores. Mas, há também e felizmente muitos outros que nos propiciam alegrias, orgulho, esperança, força. Saber lidar com essa roda viva é de suma importância para mantermos um pouco de sanidade diante de tantas demandas, cobranças externas, burocráticas, mas internas e subjetivas.
               Eu sou daquelas que se cobra, constantemente e, muitas vezes, de maneira implacável. E trata-se de uma cobrança a mim mesma, se estou fazendo o melhor possível, se estou sendo objetiva, se me faço entender, se posso oferecer mais, se devo dar mais tempo. Teoria e prática são repensadas em sala de aula. Mas, há algo que me incomoda muito e tem muito a ver com a minha personalidade, com minha formação, com o meu tempo histórico, com o mundo em que eu vivi minha formação inicial repleta de valores, regras, hábitos e conceitos diferentes. No entanto, eu custo a concordar com a falta de dedicação e o desrespeito com o outro quando estamos em situação de sala de aula. Tenho certeza que não sou a única, mas o que fazer?
               É preciso se distanciar, é preciso olhar o contexto, é preciso fazer um exercício intenso de entender o outro, a diversidade de tempos, vivências, olhares, entender que temos uma tarefa maior do que a de passar os conteúdos de uma matéria, é necessário um esforço grande para entender que muitas vezes precisamos mostrar que o processo de aprender é algo que também precisa ser aprendido e isso leva tempo.
Fizemos um grandioso evento no IFSP campus Matão de 10 a 13 de abril, tratou-se da “III Semana da Diversidade: todos sob o mesmo céu”, discutimos uma série de temas prementes, pulsantes, extremamente importantes para um contexto escolar e para a nossa vida fora dele. Foram palestras sobre gênero, questão indígena, sessão de filme, roda de conversa sobre sororidade, conferência sobre racismo institucional, palestra e mini-curso sobre sexualidade, conferência sobre quilombolas, sobre apropriação cultural, sobre direitos humanos, sobre imigração japonesa e cultura, tivemos também apresentações artísticas, vivências e um concurso de fotografia, além de intervenções anteriores ao evento. Foi rico, foi bonito, foi intenso, fomos ousados! Uma semana discutindo temas tão cruciais com palestrantes altamente qualificados, engajados e imbuídos na mudança de perspectivas.
                Durante o processo de realização houve tensão quanto à participação dos estudantes, ávidos em falar desmedidamente, em não ouvir, em estar fisicamente no local, mas não integralmente, em não vivenciar o que havíamos proposto com tanto zelo. Mas, essa é apenas uma face da moeda, pois houve aqueles que se entregaram que viveram conosco todas as discussões e ainda mais, voltando a rotina de sala de aula, percebo que os tempos são múltiplos e que de fato o aprendizado se fez e é possível de ser feito mesmo quando não parece a mim, alguém que ainda usa suas experiências como comparativo.  
                É preciso criar oportunidades sempre para que o ensino-aprendizagem ocorra, e trata-se de um processo que não tem uma mão única e nem pode ser assim. 


quarta-feira, 29 de março de 2017

"Meu nome é Jacque"

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

               Como é importante entender que a vida precisa estar amparada em uma compreensão da diversidade e mais de uma completa aceitação de que somos diversos, nas cores, jeitos, línguas, origens, classes sociais, religiões, pensamentos e tantas outras características e identidades que nos fazem ser tão incrivelmente complexos e interessantes.
               Na última quinta-feira dia 23 de março participei de uma atividade do Mês da Mulher realizada pelo Centro de Referência da Mulher “Professora Heleieth Saffioti” na Sala Jean Paul Sartre na Casa da Cultura de Araraquara. Tratou-se da exibição do filme “Meu nome é Jacque” baseado na vida de Jacqueline Rocha Côrtes, uma pessoa incrível que venceu tantas dificuldades, superou tantos desafios e aprendeu sobre engajamento político e militância na prática, construindo sua própria história e identidade.
Jacqueline é uma mulher transexual nascida em um corpo que a aprisionava, não se enxergava nele. Ela se refere a dor de estar em um corpo que não a representava fisicamente e tampouco em sua subjetividade. Todos à sua volta percebiam essa dissonância, especialmente sua mãe, seu porto seguro, figura forte e constante em sua vida. Jacqueline era uma mulher em corpo de homem, se identificava com tudo o que dizia respeito ao mundo feminino. Felizmente e, diferentemente, de muitos casos do passado e no presente, Jacqueline teve apoio em casa, na família. Teve apoio para deixar fluir e encontrar sua verdadeira essência, mas não sem enfrentar e quebrar traumas e barreiras.
O filme nos ensina ser necessário ver o outro despido de preconceitos. Ele é bem construído, porque a história de vida de Jacque é fabulosa. Não é apenas sobre uma mulher transexual, porque Jacque transcende os temas, os rótulos, ao menos foi dessa maneira que me senti ao conhecer um pouco de sua vida, de sua família. O filme é sobre uma pessoa e sua luta.
Ao final da exibição tivemos a honra de ouvi-la, de dialogar com ela e com uma de suas irmãs, Gisele Rocha Côrtes que veio a ser a primeira coordenadora de políticas para mulheres em Araraquara e minha contemporânea de Unesp. Foi um prazer enorme vivenciar esse momento, mas é preciso querer olhar para o outro, não apenas como um outro, mas como parte de nós.



terça-feira, 21 de março de 2017

Estamos na luta

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

                               
Temos vivido muitos desafios nesses últimos tempos. São tantas as demandas. Ficamos mesmo estarrecidos com algumas situações sejam pessoais ou coletivas. A vontade de fazer algo para termos mudanças substantivas é grande e constante. Com certeza, estamos na luta! Luta pela sobrevivência física, luta pela sobrevivência das ideias, luta para mantermos um mínimo de sanidade possível, pois, às vezes, parece que o mundo resolveu girar ao contrário. O que podemos fazer? Eu penso que temos feito. A tal passividade do brasileiro tão anunciada aos quatro ventos não é real.
Tenho trabalhado com meus alunos questões que tratam da invenção do Brasil, questões que perpassam a formação de nossa nação, povo, de nossa identidade. De que maneira fomos forjados, quais os discursos vencedores de uma brasilidade incompleta. Há tanto para se refletir.
Ouvir que o brasileiro não luta por mudanças é uma falácia. Sempre houve luta desde a chegada nada por acaso dos portugueses por essas terras, no entanto, um movimento de apagamento dessa disposição para a luta tem atuado intensamente na sua invisibilização e criação mesmo de uma identidade pautada apenas na alegria, na harmonia. Talvez, devamos ampliar a noção e significado que temos de luta. Não é apenas aquela travada com armas de fogo, com morte física e violência, mas sim um combate também de ideias, de visões, de ideologias. Há aquelas pessoas por inúmeras razões que se colocam ou são colocadas na linha de frente, mas há também aquelas que se posicionam cotidianamente de maneira combativa, em diferentes posições e espaços, lutando para que outras visões possam ser vistas, atuando  como vozes dissonantes de uma história única inviável e inexistente.


terça-feira, 14 de março de 2017

A arte para a vida

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

               A arte pode e deve ser um caminho importante para refletirmos sobre a vida, sobre o mundo em que vivemos, sobre o nosso tempo histórico, suas perspectivas e mudanças, sobre o tempo como um condutor legítimo de nossa existência e destino.  A arte é poderosa! Quando se entranha na alma da gente pode causar um furor, um êxtase, pode abalar as certezas antes inquestionáveis. É isso que senti ao participar da Aula Inaugural da Escola Municipal de Dança “Iracema Nogueira” aqui em nossa cidade no último sábado dia 11 de março. Vivi uma possibilidade múltipla de contato com diferentes linguagens artísticas: teatro, dança, artes visuais, música, um verdadeiro deleite para um momento de tantos desgostos que tenho e temos vivido nesse Brasil e no mundo.
        Melhor ainda conhecer um pouco da trajetória da escola, de seu projeto pedagógico, de sua responsabilidade, saber que está completando 15 anos de existência e ver os muitos frutos já colhidos e tantas sementes plantadas. Se não houve um direcionamento para uma carreira artística ao fim dos 6 anos de participação na escola, há sempre uma direção certeira, um compromisso de toda a equipe em viabilizar “o acesso aos bens culturais e artísticos”, a formação completa daqueles que nela estão e, para além dela: suas famílias e toda a nossa comunidade. Ao ingressarem na escola os(as) jovens vivenciam um espaço aberto ao diálogo, liberdade de se colocar e pensar de maneira mais autônoma, de traduzir suas reflexões nas diversas linguagens artísticas da escola. Com certeza, um projeto inovador de educação quando se iniciou e ainda hoje, pois atua para que a comunidade receba/tenha/enxergue jovens lúcidos(as) do mundo que os(as) cercam, oferece, a meu ver, condições de emancipação, de ser no mundo de maneira mais completa.
  Meu coração se encheu de alegria ao ter a oportunidade de assistir as apresentações de alunos(as) já formados(as), as quais renderiam outros artigos tal a força, talento, energia! Sou, desde criança, uma entusiasmada com a linguagem teatral, gosto de ver o palco, a projeção vocal, gosto de pensar nos bastidores, tenho fascínio mesmo pela maneira como atores e atrizes se transformam e nos transformam no exercício de sua arte, como conseguem transmitir com o corpo, voz, cenário uma história, uma mensagem, uma angústia, uma esperança.
  Nas apresentações que pude ver, nas falas oficiais, na apresentação dos novos(as) alunos(as), na vibração dos familiares pude vivenciar um diálogo profícuo entre todas as linguagens artísticas, um entrosamento daqueles que fazem a escola acontecer e a comunidade.
              Vida longa à escola “Iracema Nogueira” e toda sua primorosa equipe. Que nos próximos 200 anos de Araraquara tenhamos ainda mais arte para a vida!



terça-feira, 7 de março de 2017

Dores do viver

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Faz duas semanas que não escrevo meus artigos. Não tem surgido inspiração, por mais que haja centenas de assuntos que precisamos lidar, refletir e que não deixei de me preocupar. No entanto, estou passando por um momento muito delicado em família. É preciso ainda aprender a viver esse momento ou reaprender a viver depois dele. Talvez, escrever sobre ele seja uma maneira de intensificar esse reaprender.
Perdi uma sobrinha de maneira trágica e muito precoce. Uma lindeza de menina. Uma dor sem tamanho invadiu toda a nossa família, essa instituição social que mudou tanto nas últimas décadas, mas que ainda valorizamos seja ela como for, porque nela esperamos encontrar conforto, cumplicidade, confiança, apoio, amor. Momentos como o que estamos vivendo nos provam que há nela ainda tudo isso independente da configuração que ela venha a ter. E aqui incluo ainda aqueles amigos que são como membros de nossas famílias, nos inspiram confiança, nos oferecem carinho e não se furtam às dores do viver em comunidade.
Aprender! Está aí uma saída possível para conseguirmos tocar a vida quando algo inesperado, quando o destino embaralha nossa cabeça, porque a perda, a partida de alguém que amamos causa uma tomada de consciência de nossa perenidade no mundo, de que não estamos imunes às dores e dissabores da vida e da morte. Isso é doloroso! Saber que somos frágeis, saber que não estamos preparados para lidar com esse elemento tão presente em nossa vida: o fim. E aqui o fim é tanto a ideia de qual a finalidade de estarmos vivos e o fim enquanto encerramento dela, reflexões e questões que milhares de pessoas, sejam elas filósofas, teólogas, cientistas, eu, você, fazem há centenas de anos. Não há uma resposta definitiva, unânime. Aprendemos a viver com essa imprevisibilidade, mas mesmo assim quando nos defrontamos com as perdas elas nos causam aquela dor no peito, um nó na garganta, um vazio enorme que precisa ser preenchido com a vida, com mais aprendizado.
O tempo costuma ser um grande aliado, não sei como, mas ele vai preenchendo os espaços vazios, ele vai trazendo ordem ao caos que se faz em nossas mentes, vai tentando nos deixar mais fortes, aos poucos vai nos mostrando os momentos bons que vivemos juntos, vai apaziguando a dor, nossa e do outro, um outro que é também parte de nós mesmos, porque estamos todos juntos nesse aprendizado e nessa espera que o tempo faça o seu trabalho. 


terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Valores africanos

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Iniciei o ano letivo de uma maneira um pouco diferente esse ano, algo bom, afinal nossa prática precisa ser repensada, constantemente. É sempre um desafio enorme ensinar. Penso que a profissão de professor deveria ser muito mais prestigiada independente da área de ensino, pois conseguir passar conhecimento, dialogar com pessoas que mal conhecemos no início, despertar e manter a atenção de uma classe nos dias de hoje e ainda se tornar referência para muitas delas é algo incrível. Alguns falam que é preciso ter vocação, pode ser, mas penso que é preciso ter uma boa formação, ter valorização, ter recursos, ter condições para se desenvolver na carreira, ter respeito.
Quando criança, eu adorava brincar de escolinha. E durante toda a vida escolar gostava de ajudar os colegas com dificuldades nas matérias. Sentia facilidade em explicar os assuntos das aulas. Muitos professores e professoras me inspiravam, tive sorte de ter grandes mestres. Felizmente, ainda tenho contato com muitos deles.
Esse ano, a primeira aula que tive com classes novas e já conhecidas, além das apresentações corriqueiras da matéria, da professora e dos alunos, tratou do que chamei de princípio norteador da disciplina e da relação que gostaria de estabelecer com meus alunos e também que esperava que eles tivessem para com os demais. Apresentei e expliquei para eles as palavras Ubuntu (eu sou porque nós somos) e Sawabona (eu te respeito, eu te valorizo. Você é importante para mim), já conhecidas de vocês, leitores e leitoras. Duas palavras de origem africana extremamente importantes e indispensáveis nos dias atuais. Disse a eles o quanto a maneira como tenho conduzido minha vida e a relação com as pessoas têm sido ancoradas nesses princípios e que nossa relação daquele momento em diante também estaria baseada neles. Tivemos um bate papo e diversas explicações da rotina, como de costume em uma primeira aula, mas nesse momento, quis trazer um pouco de minha vivência na temática africana e afro-brasileira, valorizar e aproximá-los de conhecimentos ainda desconhecidos por eles, despertar curiosidade, reflexão, quebrar preconceitos e mais, medir o quanto eles estavam abertos para algo novo, mostrando ainda o quanto a sociologia é essencial para repensarmos o mundo em que vivemos. 
A aula foi rica, profunda e leve ao mesmo tempo. Senti-me feliz e repleta de energia para os desafios desse ano.


terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Figuras Escondidas

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Essa é uma tradução mais fiel e possível para o título do filme Hidden Figures (inspirado no livro de mesmo título) que chega ao Brasil como “Estrelas Além do Tempo” premiado pelo Sindicado dos Atores nos EUA e indicado a três categorias no Oscar deste ano, melhor filme, melhor atriz coadjuvante e melhor roteiro adaptado. Esse título diz muito sobre o filme, sobre a maneira como a história tratou as três personagens, mulheres Afro-Americanas reais, acadêmicas e cientistas, Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson alinhando-se às minhas reflexões sobre a temática negra.
Digo isso porque tenho construído com vocês uma reflexão sobre a invisibilização da história negra no Brasil, mas essa não é uma realidade apenas em nosso país e tal constatação fica bastante evidente ao assistirmos ao filme. Como três mulheres excepcionais no mundo da matemática, responsáveis por grandes feitos dentro de uma das mais importantes instituições dos EUA, a NASA (National Aeronautics and Space Administration), em uma época crucial para o desenvolvimento do projeto espacial do país, foram invisibilizadas, escondidas pela história.
A genialidade dessas três mulheres diante de problemas e situações da época como a segregação racial e também a capacidade que demonstraram ao serem confrontadas com a necessidade de criar teorias inovadoras para solucionar os problemas que apareciam na corrida espacial as colocam com certeza como estrelas além do tempo. Elas criaram fórmulas, cálculos, materiais que não existiam ainda. Elas driblaram com maestria o próprio sistema de segregação racial e o sexismo ao longo de sua trajetória.
O filme me emocionou muito. Mexeu com diversos sentimentos, me fez sentir raiva, orgulho, contentamento, tristeza. Destaco diversas cenas, entre elas as que demonstram o papel da comunidade e o papel dos pais de Katherine, dispostos a oferecer a ela as condições necessárias para que desenvolvesse seu talento e superasse as dificuldades. Rompe com imagens estereotipadas de famílias negras desagregadas, como se esse fosse o único cenário possível. Lembro ainda as cenas que trazem a atuação de Dorothy Vaughan buscando construir uma estratégia coletiva de conquistas para todas as mulheres negras que se viam segregadas dentro e fora da NASA. A promoção de uma era comemorada, mas devia possibilitar a abertura de caminho para as demais. Com certeza, vi a expressão Ubuntu, “eu sou porque nós somos” neste e em outros momentos do filme! Como não se emocionar com as cenas em que Mary Jackson consegue a tão sonhada permissão de estudar engenharia em uma universidade que não permitia a entrada de negros e não contava com mulheres na turma.
Três mulheres, grandes feitos. E, talvez, o maior ainda seja conseguir romper com o racismo que atuou fortemente na invisibilização de suas trajetórias. Vale muito a pena assistir e atuar para que essas e outras muitas mulheres negras tenham o seu devido reconhecimento e espaço na sociedade e na história.


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Sawabona

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Essa é uma expressão utilizada por grupos sociais na África do Sul cujo significado vem bem ao encontro de minhas reflexões, “eu respeito você, valorizo você e você é importante para mim”. Precisamos muito de Sawabona! Teríamos um mundo bem melhor se conseguíssemos conduzir nossas vidas tendo esse ensinamento como princípio básico. Gosto quando palavras traduzem emoções, simplificam lições necessárias, mas elas devem ser vividas de fato, não apenas proferidas ao vento ou, nesse nosso novíssimo mundo, nas redes sociais.
 Eu respeito todas as formas de religiosidade, respeito aqueles que acreditam, os duvidosos, os certos na descrença, são todos importantes para uma visão mais plural de nossa realidade. Algumas pessoas me encantam na maneira como se colocam no mundo, na maneira como expõem suas ideias e como conquistam nossa atenção. Me encantam ainda aquelas pessoas firmes, fortes, convictas, e também as doces, serenas, calmas. Me encanto pelas pessoas e suas características, suas peculiaridades e singularidades.
Pude viver esse encantamento no último dia 21 de janeiro (Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa) em Araraquara, no Centro Afro “Mestre Jorge”, ao participar do 1º Encontro de Combate à Intolerância Religiosa. Destaco o gosto de ver a atuação de Francisco Luiz Salvador, o Kiko, a frente do cerimonial, trazendo sua vivência e nos brindando com seus conhecimentos. Compuseram a mesa o prefeito municipal Edinho Silva, a coordenadora de Políticas para a População Negra e Indígena do Estado, Elisa Lucas Rodrigues, a deputada estadual Márcia Lia, a vereadora Thainara Faria, a secretária de Planejamento e Participação Popular, Juliana Agatte, o presidente do FECUMSOL (Federação Espírita de Umbanda e Candomblé Morada do Sol), José Francisco Tomé dos Santos, o cientista social e mestrando em Sociologia Geander Barbosa e o novo responsável pela CEPPIR (Coordenadoria Executiva de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) Luiz Fernando Costa de Andrade, um jovem brilhante, que herdeiro de uma tradição de luta e conquistas de gestores anteriores passa a atuar e traçar estratégias para uma Araraquara quase bicentenária.
Todas as falas das autoridades foram inspiradoras como as intervenções e relatos do público presente, vindos de diferentes pontos da cidade e região. Mostraram problemas traduzidos no desrespeito, na ânsia por tentar dissuadir o outro de suas especificidades e suas maneiras de viver a espiritualidade. Nessa guerra, as religiões de matriz africana continuam sendo as mais atacadas. Essa guerra envolve poder, o poder de nomear o mundo espiritual, o poder de dizer qual espiritualidade é aceitável e outros tantos pequenos e grandes poderes.
           Vamos nos permitir respeitar o outro, valorizar o outro e tudo o que ele representa, tudo o que ele é ou pode vir a ser. Sawabona!!!



terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Gosto se discute?

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Faz dias que estou com uma inquietação na cabeça, quer dizer, tenho várias, vivo em meio a inquietações, mas essa tem se mostrado mais insistente. Todo mundo passa por isso, não é mesmo? Sabe aquele tema, aquele pensamento que vai e volta. Para ser sincera, é um tema que está sempre presente de uma maneira ou de outra, mas há momentos na vida que nos questionamos ainda mais. Vou acabar com o suspense. Será que gostar de algo é realmente algo espontâneo, instintivo, natural? Achar algo bonito ou feio é apenas questão de gosto? Gosto se discute? Gosto muda?
Para mim, cada vez mais, gostar de algo é uma questão de aprender, conviver, ser parte, está diretamente relacionado aos padrões criados nas diversas sociedades, pelos diferentes grupos e momentos históricos. Coisas aparentemente básicas, como, por exemplo, escolher a cor azul ou rosa tem a haver com gosto? O que pode haver no fato de um menino não gostar da cor rosa e uma menina não gostar da azul? Gostar de comer arroz e feijão como a maioria dos brasileiros ou de insetos como em algumas sociedades não deveria ser problema, deveria? A meu ver, o problema está nas comparações e, mais ainda, na hierarquização que foi sendo estabelecida ao longo da história, ou seja, quando foi se determinando que gostar disso ou daquilo seria melhor ou pior, bom ou ruim, certo ou errado.  
A discussão é muito mais densa, eu sei. Aqui o espaço é curto e a intenção é apenas refletir, inquietar. Por exemplo, se ouvimos ou vemos nos canais e programas de televisão, na escola, na rua, no clube, no shopping, enfim em diversos espaços aqui no Brasil, desde a mais tenra idade que ter o cabelo liso é lindo, cheio de movimento, “normal” e que o cabelo crespo é feio, duro, “ruim” qual vamos achar bonito? Se somos crianças e entramos em lojas de brinquedos e só encontramos bonecas brancas e loiras, se olhamos para as embalagens dos brinquedos e a grande maioria é composta de figuras de crianças brancas qual será o nosso padrão? Do que vamos gostar? Isso é ruim? Não haveria ausência de uma maior representatividade? O gostar não seria restrito? O fato de não se ver, não ocasiona uma percepção que o normal é ser como o outro? Se nessa mesma loja, os brinquedos são diferenciados entre de meninas, como coisinhas para os cuidados da casa e de meninos com super-heróis, aviões, jogos de ciência, estamos atestando que há realmente brinquedos que são para meninas e meninos? A loja apenas reproduz os papéis que a sociedade definiu para uns e outros?
              Quando a gente nasce encontra um mundo todo pronto, não é mesmo? Será que podemos muda-lo ou só conseguimos nos adaptar ao que já está aí? Alguns dizem que era mais fácil entender e viver no mundo antigamente. Será mesmo? Talvez fosse, porque as vozes, os olhares, as maneiras de se encarar e construir as narrativas e a compreensão do mundo estavam restritas a poucos, hoje são muitos os sujeitos, os protagonistas e as maneiras de ser ouvido e visto. As demandas estão mais aparentes. A resistência, o debate é constante. Para mim, gostar ou não de algo tem a ver com a maneira como o mundo nos foi e nos é apresentado, a maneira como conseguimos existir nele. Nada é simples nessa vida. 


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Lei 10.639 completa 14 anos

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Dia 09 de janeiro a lei 10.639/03 completou 14 anos. Essa lei modificou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e incluiu a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira em todos os níveis da educação brasileira. Tenho falado bastante dela em meus artigos, mas essa lei e as reflexões trazidas por ela têm sido um norteador para diversas ações, principalmente, na formação de professores e na maneira como devemos conduzir nossa prática em sala de aula.
Há muitas indagações em se tratando desta lei. Por que se ensinar história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas? Para quê? Não basta apenas aprender história do Brasil? Onde encontrar material didático? Como preparar as aulas? Como dialogar com os estudantes e com toda a comunidade escolar? Essa lei pegou? Não é uma invenção da esquerda? Tenho ouvido parte dessas questões e muitas outras ao longo dos últimos anos e nos mais recentes tem havido um ataque brutal contra iniciativas importantes de construirmos uma sociedade realmente plural em que a história contemple também os grupos subalternizados.
Como podemos transformar a sociedade? Eu escolhi a educação como uma arena possível para isso. E educação aqui entendo como um processo de socialização ocorrendo para além do espaço escolar. A importância da lei 10.639, alterada pela 11.645 em 2008 incluindo  também o ensino de história indígena, é a meu ver gigantesca, primeiro porque temos a possibilidade de refletir sobre a nossa sociedade, sobre as causas e necessidades de leis como essas e as dificuldades de sua efetiva aplicação, segundo porque conseguimos mapear conquistas, iniciativas realizadas país afora, pessoas sensibilizadas para a necessidade de deixarmos de ver o mundo apenas por uma perspectiva, mas aprendendo e entendendo que nossa visão é sempre uma perspectiva de muitas que podem haver. Parece pouco? Mas, não é! A história do nosso país tem sido escrita e ensinada como única, bem, não apenas a do nosso país, o mundo tem sofrido uma guinada conservadora, retrógrada atuando na legitimação e reprodução das desigualdades históricas, onde cada grupo inferiorizado deve continuar ocupando aquele espaço que estava reservado a eles desde sempre. No entanto, eu escolho acreditar na resistência cotidiana tão presente entre esses grupos subalternizados.
           A lei 10.639 tem implicações muito além dos muros da escola, ela demonstra a organização do movimento negro brasileiro que desde a primeira metade do século XX já destacava a importância da educação para a superação do racismo, ela se espalha por outras esferas da sociedade fazendo padrões serem repensados, discutidos, transformados. Para muitos, pode ser pouco. Para mim, deve ser constante e visível.


terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Thainara Faria

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Um ano novo começou. 2017 estava sendo aguardado. Mesmo sabendo que 2016 nos perseguirá ainda por muito tempo é bom recomeçar e termos novas perspectivas. Afinal, há algumas ações realizadas no ano anterior que darão frutos nesse. Aqui me refiro a uma pessoa em especial que vem se destacando, uma mulher, negra, jovem, estudante de Direito, da periferia, pela primeira vez candidata a vereadora e eleita como a terceira mais votada do munícipio, falo de Thainara Faria.
A primeira vez que nos encontramos senti nela tamanha vivacidade e energia, um brilho intenso, uma vontade de agir, de ser. Aos poucos fui sabendo mais de suas ideias, sua luta e intenções. É tão bom estar perto de pessoas talentosas, mais ainda de pessoas autênticas, cheias de orgulho e gratidão por suas origens.
Senti uma alegria enorme, uma forte emoção, euforia mesmo ao vê-la sendo empossada ontem como a primeira mulher negra vereadora em Araraquara para a legislatura 2017-2020. Vi que estava diante de um prodígio. Thainara tem uma aura de pessoa incomum. Com apenas 21 anos já se tornou vereadora. Fala com tanta desenvoltura, sabe compor, sabe ouvir e não está só, conseguiu construir uma base sólida de apoio expresso nas urnas, traz consigo o Coletivo Formigueto impulsionando e dando-lhe força, tem uma rede e isso faz diferença.
O Brasil está precisando de novas posturas, novas maneiras de construir o cenário político de verdade, na prática, não apenas no discurso. Está precisando de pessoas que entendam que atuar na vida política é ser um servidor público, é trazer as demandas da sociedade, mas, deveria ser também, propor o melhor antes mesmo das demandas. É colocar os interesses e o bem comum em primeiríssimo lugar. 
Não faltam atributos, capacidade, vontade e coragem para fazer diferente, para que Thainara imprima a sua marca. Quando falo prodígio entendo como uma pessoa jovem que se destaca por características e talentos acima da média. Um potencial enorme e tão jovem, por isso mesmo terá que enfrentar inúmeros percalços à frente, seja como mulher, seja como negra e, no seu caso, como jovem talentosa. Para poder exercitar seu potencial, alcançar seus objetivos e ir além não poderá faltar apoio, pois dificuldades e desafios fazem parte do caminho.
             Thainara, acredito em você e em seu potencial. Sinto-me representada como mulher negra e parte de uma comunidade que luta por um ideal de vida mais justo e sem discriminação. Ubuntu!


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Pércio e Ivone

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Esse é o último artigo do ano. E que ano! Só espero, sinceramente, que 2017 seja pelo menos um pouco melhor. É preciso ter esperança para que não sejamos derrubados pelas dificuldades. É preciso consciência, equilíbrio, garra para enfrentar as batalhas que ainda virão, afinal viver é um desafio constante. O Brasil precisa se recompor, precisamos de pessoas sérias, de uma classe política comprometida com o melhor para os cidadãos em geral e em suas especificidades, mas para isso, precisamos também ser sérios e comprometidos. Precisamos encontrar saídas em conjunto, uns e outros, pois estamos perdendo conquistas valiosas, nosso país parece naufragar, não há condução, não há diálogo, mas nós somos destemidos e não estamos passivos como querem nos fazer parecer ser. Há muitos de nós gritando, marchando, agindo de um jeito ou de outro. Afinal, tem sido assim: lutar sempre no campo em que estivermos.
Na semana passada, encontrei duas pessoas bastante queridas, um casal que me encheu de esperança, Pércio e Ivone Damázio, completaram 70 anos de união e 88 anos de idade, ambos. Praticamente, uma vida inteira, juntos!
Sr. Pércio, ferroviário aposentado, foi a primeira pessoa que entrevistei durante minha pesquisa de mestrado sobre o Baile do Carmo. Fez parte da Sociedade Recreativa Cruzeiro do Sul que existiu na cidade. A ele me referencio, sempre. No alto de seus 88 anos, permanece lúcido, elegante, cheio de vivacidade e uma memória invejável. Dona Ivone uma mulher forte, firme, mas ao mesmo tempo para mim, uma doçura, preocupada durante nosso encontro em me passar receitinhas caseiras para encerrar uma tosse que vem me perseguindo. Sempre gentil, me entrega um vidro de mel e me pede para tomar com regularidade, com limão, com chá ou puro mesmo. Aceito o presente e me sinto feliz, querida.
Fizeram um pequeno mimo para os familiares e amigos a fim de registrar suas bodas, um lindo cartão marcando os 70 anos de união e desejando boas festas. Tive a honra de receber um. Em tempos de tanta desestrutura, de caminhos duros, ainda há amizade e amor.
              Como viver tanto tempo juntos? Dona Ivone me responde que é preciso muita paciência, para superar as diferenças, para driblar os problemas que aparecem, para constituir uma família, para arrefecer as perdas e as ausências que uma vida longeva impõe. É bonito vê-los juntos! Existe amor neles, daquele pouco falado, exposto e mais vivido. Deixo-os com uma sensação de esperança que o tempo pode sim nos unir, pode sim ser mais propício.


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Eduardo Lourenço

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Essa coluna tem sido uma maneira de contribuir para refletirmos sobre temas importantes, principalmente, aqueles temas marginalizados ou esquecidos pelo registro histórico oficial. Há tanta pluralidade de práticas, vivências e pessoas que precisam ser conhecidas a fim de superarmos preconceitos e conseguirmos respeitar as diferenças.
Eduardo Lourenço é exemplo de uma pessoa que precisa ser conhecida. Foi um escravizado em Araraquara, mas pouco sabemos sobre sua vida. Está enterrado desde agosto de 1915 no cemitério São Bento. Em sua lápide constam algumas breves informações sobre ele, entre elas que teria nascido em 1834 e conseguido a liberdade em 1886, dois anos antes da abolição da escravidão no Brasil ocorrida em 1888. Eduardo inspira respeito e grande devoção há algum tempo o que pode ser constatado pelas diversas placas de pessoas que alcançaram alguma graça por seu intermédio.  
Não poderia deixar de registrar o ato que ocorreu no domingo, dia 18 de dezembro, no cemitério São Bento. Por iniciativa de Rogério Belmiro Tampellini, pesquisador que tive o prazer de conhecer na ocasião, uma pessoa dedicada à preservação dos patrimônios da cidade, houve o tombamento do túmulo de Eduardo Lourenço, conhecido, popularmente, como Escravo Eduardo, Santo do Povo, Santo Milagreiro. Tal ação foi deliberada pelo COMPPHARA, cuja responsabilidade está na preservação do patrimônio material e imaterial da cidade. Rogério conseguiu apoio de diversos vereadores, da Igreja Anglicana do Brasil, através do arcebispo dom Ricardo Lorite de Lima da Arquidiocese de Ribeirão Preto e do Terreiro de Umbanda “Pai Eduardo – Caboclo Irapuá” para levar adiante o registro desse patrimônio.
A cerimônia de tombamento foi conduzida por dona Marina, Babá do Terreiro e por todos os presentes. Este evento me fez refletir quantas informações ainda precisam ser levantadas sobre pessoas como Eduardo Lourenço, qual seria sua história, como vivera após ter conseguido sua liberdade? No entanto, diante de tudo que temos vivido nos últimos tempos, de desrespeito causado em grande parte pela ignorância e desconhecimento da pluralidade existente e necessária também na maneira de vivenciarmos a religiosidade e o contato com o divino, uma iniciativa como essa, em torna-lo um patrimônio da cidade, é algo louvável que deve ser registrada, promovida, divulgada. 
           Em tempos de Natal, aproveitemos o momento para refletirmos ainda mais sobre a necessidade de aceitar os outros e a diversidade como um ato de amor e respeito a todos.


sábado, 17 de dezembro de 2016

Rico aprendizado

                                Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, 
doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, 
história e educação na temática étnico-racial.

O curso de Formação Inicial e Continuada “História e Cultura Africana e Afrobrasileira” foi realizado desde agosto deste ano no IFSP, campus Matão. Foram várias semanas de rico aprendizado compartilhado, vivido intensamente pelos cursistas e professores. E não poderia deixar de registrar a última aula realizada no dia 03 de dezembro.
O curso foi idealizado para ser de formação de professores e cumpriu esse objetivo. Foi heterogêneo no público atendido, uma vez que tivemos professores(as) de diversas disciplinas participando do curso, de história, biologia, língua portuguesa, educação física, sociologia, filosofia, tivemos ainda estudantes de licenciatura, de mestrado e doutorado e também da educação infantil. Formamos um grupo forte, de reflexões preciosas, de muita discussão e debate, de muito respeito e dedicação. Alguns participantes já vinham de edições de cursos anteriores que tive a oportunidade de coordenar. Nossos encontros foram prazerosos, mesmo que estivéssemos tratando temas, muitas vezes, intragáveis. Eram prazerosos, pois havia interesse, dedicação em entender e colocar certas questões. Iniciávamos com um café feito coletivamente, afinal é sempre necessário alimentarmos o corpo. E esse fazer coletivo era também um aprendizado, estávamos juntos, nos preocupávamos uns com os outros.
A última aula teve início com uma visita/encontro ao nosso Baobá, espécie símbolo do continente africano que tivemos a honra de plantar em 2014 no encerramento de um outro curso de formação de professores realizado também em Matão. Foi um momento lindo! Fizemos um círculo ao redor dele, lemos poesias e trocamos energias. Tenho acompanhado o crescimento desta árvore, afinal não basta plantar, é preciso cuidar, por isso não poderia deixar de apresentá-la aos demais. O baobá é uma árvore muito longeva, por isso, espero que meu filho, que nos ajudou em seu plantio possa continuar conectado a ele e passe esse vínculo às gerações futuras, porque serão elas que o verão mais frondoso. 
            Voltamos para a sala de aula emocionados com esse encontro, de uma certa maneira nos conectamos aos nossos ancestrais. Tivemos a oportunidade de ouvir em vídeo conferência o historiador e professor Dr. Amilcar Araújo Pereira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) um amigo querido com quem aprendo muito. Ele nos ajudou a refletir sobre as ações afirmativas e a superação do racismo, sobre o quanto é importante construirmos um caminho histórico das ações afirmativas, sobre a necessidade de mexermos com privilégios incrustados na nossa formação nacional. Amilcar focou a importância da lei 10.639/03 que instituiu o ensino de história e cultura africana e afrobrasileira e seu papel revolucionário como uma ação afirmativa, uma vez que se busca romper com uma visão eurocêntrica bastante evidente nos nossos currículos escolares.
            Tivemos também a participação da historiadora, professora, mestranda em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e amiga, Luana Tolentino, falando conosco sobre feminismo negro e sua experiência em sala de aula. Luana tem construído uma prática pedagógica baseada no respeito, na troca com os alunos e no combate ao racismo. Relatou suas lutas, dificuldades, mas também as conquistas. Sua história de vida é prova de seu compromisso com uma educação inclusiva, libertadora, plural. Com certeza, foi um ganho para nós saber sobre sua trajetória e sobre o papel da mulher negra em sala de aula e fora dela. Vocês podem pesquisar sobre esses dois importantes professores com facilidade na internet, encontrando artigos e livros escritos por eles.
Ser plural foi um objetivo do curso, plural nos temas, nas linguagens, nos professores convidados e seus diferentes sotaques, afinal ser negro é ser plural. Sentimos que é preciso criarmos outros referenciais, pensarmos outras perspectivas, pois o Brasil é rico em negritudes, em maneiras e estratégias que a população negra vem criando para existir, para resistir.

Encerramos nossa aula com uma feijoada, proposta pelos cursistas, feita e apreciada coletivamente, porque um dos valores civilizatórios afro-brasileiros é a cooperatividade, o cuidar um do outro. Agora, fica o convite para não nos perdermos, para que criemos outros momentos para estarmos juntos. 2017 promete!


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Projeto Mulheres Negras

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Temos vivido momentos tão angustiantes, tensos, controversos, porém, felizmente, há também muito mais do que esses momentos para vivermos. Há muitas pessoas promovendo ações importantes, semeando esperança, construindo novas práticas por onde passam, com vistas a termos um presente e um futuro melhor. Parece clichê, mas não é! Todos nós sabemos que mudar a maneira como vemos o mundo não é tarefa fácil, mas é necessário agirmos para isso, darmos oportunidade para que novas ideias nasçam, cresçam, se multipliquem e transformem as realidades em que estamos inseridos.
Tenho buscado olhar o mundo sob diversas perspectivas. Há muitas experiências que devem ser valorizadas, divulgadas, estimuladas. É preciso estar atento para que elas sejam de fato notadas, pois muitas vezes pequenas ações têm um efeito incomensurável. Tive prova disso, quando a amiga e professora Maria Fernanda Luiz, mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) me convidou para participar do projeto “Mulheres Negras e Suas Histórias” sob sua coordenação na Escola Estadual “Antonio de Oliveira Bueno Filho”. Primeiro, tal convite me fez refletir e repensar a minha própria atuação, pois deveria falar sobre minha trajetória para crianças de 7 e 8 anos do segundo ano do Ensino Fundamental. Falar com eles sobre questões que envolviam a temática étnico-racial. Nunca tinha feito tal atividade para um público dessa idade. Com certeza, a participação nesse projeto me fez sair do lugar comum, da chamada zona de conforto. Estar disposto a sair de nossas zonas de conforto deveria ser uma condição e oportunidade para quem trabalha com educação.
O projeto reuniu diversas mulheres negras da cidade de Araraquara para narrar um pouquinho de suas experiências, Alessandra de Cássia Laurindo, Nayara Costa, Thainara Faria, Roseli Gustavo e eu estivemos em dias diferentes com as crianças. Devo dizer que estava muita cansada no dia em que estive com elas, vinha de uma série de atividades do trabalho e ainda temia se daria conta de ajustar a linguagem, se saberia falar para um público tão jovem. Mas, todas essas dúvidas cessaram quando entrei na escola. Fui tão bem recebida, senti-me uma celebridade. Todos queriam sentar ao meu lado, fazer perguntas, depois queriam tirar fotos, me abraçar. Me encheram de energia renovadora, de inocência e carinho.
Na semana passada dia 02 de dezembro, houve o encerramento do projeto realizado na escola para todos os envolvidos: mulheres que narraram suas trajetórias, crianças e seus responsáveis, além da professora idealizadora. Foi um momento lindo! Pudemos ver nos olhos das crianças o quanto nos tornamos referências positivas de lugares múltiplos que as mulheres negras podem e deviam ocupar na nossa sociedade para além daqueles já estereotipados.  

Parabenizo a professora Maria Fernanda pela sensibilidade com que conduziu todo o projeto e, especialmente, seu encerramento. Eu tenho certeza que ações como essas ficarão para sempre registradas nas memórias das crianças, de suas famílias. Foi uma ação positiva, afirmativa, ação importante para tirar da invisibilidade mulheres negras que fazem suas histórias. Um projeto como esse pode mudar a maneira como as crianças enxergam o mundo e a si próprias, e também, como nós mulheres protagonistas do projeto pensamos a nossa própria trajetória e militância. São ações como essas que nos oferecem alento, alegria e incentivo para uma vida melhor. 


terça-feira, 29 de novembro de 2016

Conhecer sempre

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Tenho conversado com vocês por meio dessa coluna sobre escolhas que fazemos e que os outros fazem ou fizeram por nós, sobre oportunidades de aprender, sobre a necessidade de mudarmos nossas perspectivas e estarmos sempre dispostos a ampliar nossos olhares e sermos mais sensíveis ao mundo em que vivemos e construímos. Na semana passada de 21 a 25 de novembro realizamos uma semana de atividades dentro do Mês da Consciência Negra no IFSP, campus Matão. Tivemos a oportunidade de discutir a temática étnico-racial com pessoas que vivenciam, estudam, entendem e se debruçam sobre temas importantes para repensarmos a nossa sociedade, os preconceitos e o racismo nela existentes.
Esses temas foram mais evidenciados nessa semana, por conta do 20 de novembro, mas pode e deve ser tratado nos 365 dias do ano na escola e em outros espaços sociais. Tratar a maneira desigual como negros e negras estão representados na nossa sociedade a partir da educação é uma obrigação que o estado precisa enfrentar sem retrocessos.
Nós conseguimos em nossas atividades construir um espaço importante de discussão e conhecimento. Iniciamos pela manhã com a Profa. Dra. Elisângela de Jesus Santos, do CEFET-RJ, que tratou de ações afirmativas realizando um breve percurso histórico e nos fazendo refletir sobre as causas que as justificam. Tivemos ainda à noite a palestra de João Bento uma grande liderança do movimento negro de Matão que atua de maneira vigorosa na luta contra a discriminação e o racismo, ele nos trouxe os heróis negros esquecidos pela história, ele se emociona e nos emociona com sua fala. Nessa mesma noite, pudemos ouvir o professor Júlio Ribeiro o qual tem feito um belo trabalho tanto no exercício de sua profissão quanto no trabalho de recontar a história dos negros em Matão, recolhendo depoimentos com os mais velhos, com os guardiões da memória.
Na terça-feira de manhã tivemos a palestra com o Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca da UNESP, um grande nome da temática étnico-racial, meu orientador no mestrado, pessoa que me abriu um mundo de temas para ser estudados, aprendidos e vividos. Ele discutiu as piadas e o racismo no Brasil. À tarde, o Prof. Me. Luiz Fernando Costa de Andrade teve um papo muito sério com os estudantes, traçando uma compreensão sobre racialização, cor e cultura.
Na quarta-feira, foi o dia da capoeira ter seu espaço nas nossas atividades com o Prof. Flávio Rodrigues, Leianne Miranda e Edevandro do Manifesto Capoeira aqui de Araraquara. Foi uma participação preciosa que encheu de energia ancestral nosso campus.
Na quinta-feira, tivemos um dia repleto desde a manhã até a noite, com as presenças de Sumbunhe N´fanda, formado em Administração Pública pela UNESP, de Guiné Bissau passando aos estudantes uma outra maneira de se olhar para o continente africano, buscando romper com os estereótipos e preconceitos. À tarde, Elcio Riva Moura falou sobre o movimento indígena e nos trouxe a possibilidade e necessidade de pensarmos em uma aproximação entre as temáticas. Depois, foi a vez de Érica Alexandre dominar a área e expor a beleza negra, em sua oficina de turbantes. Valorizar a beleza negra é de extrema importância para a autoestima e para questões de representatividade. À noite, tivemos uma bela apresentação musical com Daia Fernandes e Felipe e, em seguida a Profa. Ma. Maria Fernanda Luiz, a advogada Nayara Costa e a estudante de direito e primeira vereadora negra eleita em Araraquara Thaiana Faria nos trouxeram reflexões importantes sobre educação, direito, saúde e política. Foi uma noite memorável de intenso debate.
         Encerramos na sexta-feira com uma vídeo conferência com o Prof. Me. Bruno Véras, doutorando na Universidade de York no Canadá que falou aos estudantes sobre a escravidão no continente africano, sobre categorias que muito ouvimos, mas pouco entendemos de fato. Foi sem dúvida uma semana incrível, de muito valor, aprendizado e reflexões que devem continuar nas nossas mentes por muito tempo ainda.




terça-feira, 22 de novembro de 2016

Escolhas brasileiras


Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Aprender é algo importante desde a mais tenra idade. Vivemos aprendendo e aprendemos vivendo. Primeiro, no contato com nossos pais, irmãos, no seio da nossa família, depois ampliamos um pouco as fontes que nos oferecem aprendizado. A escola é uma dessas fontes e, a meu ver, a mais importante instituição para que o conhecimento seja construído, transmitido, ampliado. É a base de uma sociedade. Educação e escola atingem a todos os cidadãos. Ela não é o único espaço para o aprendizado, mas é, sem dúvida, o mais abrangente.
Nos últimos anos essa constatação tem sido a minha justificativa para desenvolver e coordenar cursos de formação/atualização de professores, afinal se um conhecimento precisa ser multiplicado não haveria personagem mais importante para isso do que o professor. É esse público que tenho escolhido para atingir muito mais pessoas. Cada projeto desenvolvido me faz manter a escolha e valorizar ainda mais o papel social dos professores.
O conhecimento é algo fascinante! O quanto de novo podemos aprender? Felizmente, não há um limite, não há uma idade para se deixar de aprender. Mas, pode haver resistências construídas no passar do tempo, ideias sedimentadas, incrustadas bem fundo. Pode haver perda da capacidade ou da vontade de dialogar, podemos nos fechar em uma perspectiva e não nos abrir para outras possibilidades.
Quando pensamos educação de um país, devemos levar em consideração que tipo de educação queremos e que tipo de educação querem nos oferecer ou nos impor. Reformas são importantes, porque a educação precisa acompanhar as mudanças sociais, mas de que maneira elas devem acontecer? Quem serão os protagonistas? Quais mudanças são escolhidas para embasar uma reforma? Qual a amplitude, impactos, condições concretas de uma reforma ocorrer e ser bem-sucedida? Não há como não pensar que tudo o que se passa no mundo social é construído pelos seres humanos e fruto de um jeito de olhar para o que lhes acontece.
Essas poucas linhas são reflexões que se avolumam a cada dia nas discussões com os colegas de profissão sobre as atuais propostas de reforma da educação brasileira, a partir das nossas experiências comuns, ou ainda por meio do curso que temos realizado no IFSP campus Matão sobre História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. Vocês podem não acreditar, mas uma aula de Arte e, especialmente, de Arte Afro-Brasileira, pode nos fazer enxergar o quanto o Brasil que temos é fruto de escolhas.
Ficou bastante evidente para quem participou da aula conduzida pela professora Christiane Tragante e por uma turma muito interessada, que existe uma gama de artistas, para se ficar apenas nas artes visuais, negros(as) com produção riquíssima, conhecimento, premiações, mas que não foram e não são escolhidos para representar a identidade brasileira. Exatamente isso, não foram escolhidos, pois se tinham a mesma capacidade, porque não tiveram e ainda não têm o mesmo reconhecimento?
               Tem havido um tipo de preferência nas escolhas no Brasil, de como ser, de que país somos ou queremos ser, o que tem levado à invisibilização de outras escolhas possíveis de maneira constante na história do nosso país. Se, por exemplo, temas como história e cultura africana e afro-brasileira deixarem de constar nas leis de educação e no currículo escolar, parece-me que a preferência nas escolhas volta a não representar a maioria de nossa população como sempre foi. É necessário refletir e lutar para que haja mais representação e não menos.





terça-feira, 15 de novembro de 2016

Novembro e história

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática étnico-racial.

Em 2003, foi aprovada a lei 10.639 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 instituindo o Ensino de História e Cultura Africana e Afrobrasileira em todos os níveis de ensino (público e privado) no Brasil. Ela também definiu a inclusão no calendário escolar do dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. No entanto, apenas em 10 de novembro de 2011 outra lei, a 12.519, instituiu o dia 20 como “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”.
Essa data foi escolhida em homenagem a Zumbi dos Palmares, grande líder do Quilombo dos Palmares, morto em 20 de novembro de 1695. Em 1995, o movimento negro definia o 20 de novembro como representativo da luta contra a discriminação e o racismo no país.
Há ainda muita controvérsia em relação ao feriado de 20 de novembro e tantos outros temas que envolvem a população negra. Algumas pessoas costumam mencionar que não deveria haver um feriado da Consciência Negra, pois somos todos humanos e a consciência não teria cor. Outros esbravejam que esse feriado seria um ultraje, uma afronta à história, criticando a escolha de Zumbi como um herói.
Leio e ouço argumentos contrários à comemoração do 20 de novembro. Mas, por que ele incomoda tanto? Por que incomoda ter um herói negro? Atualmente, nessa onda de polarização das opiniões, do debate e das ideias discutir esse assunto ficou ainda mais difícil, mas necessário.
Primeiramente, é preciso ter em mente que o registro historiográfico não é imparcial, neutro, livre de qualquer relação com aqueles que estão no poder, seus interesses e sua necessidade de manter a dominação em todos os níveis. A escolha de um símbolo, de uma memória para representar uma nação sempre ocorrerá em detrimento de outras tantas memórias de diferentes grupos que também atuam na construção da história, mas que na maioria das vezes não têm o poder de registrar a sua versão, sua perspectiva, não tem o poder de escolher o que será registrado.
Existem, com certeza, muitas histórias do Brasil e não uma única. Por que não levar em consideração essa pluralidade? O que deveria compor essa história plural? Por que não repensamos todos os nossos feriados? A quem eles dizem respeito? Eles nos representam de fato? Os nossos heróis, em grande parte, homens e brancos são os únicos que existiram? Não deveria haver representatividade também nesse tema?
Tendo feito essas perguntas, é importante que tenhamos condições de refletir sobre o processo e não apenas sobre o fato. Importante, saber que o Brasil é signatário em acordos internacionais para o combate à discriminação e o racismo, uma vez que muitas pesquisas, desde os anos de 1950, constataram a existência de muitas desigualdades entre negros e brancos em diversos indicadores, tais como educação, saúde, habitação, emprego. Algo que não deveria existir se realmente tivéssemos reais e iguais oportunidades para todos naquela e nesta época.
            Ter um dia no calendário que aponte para uma representatividade de mais da metade da população do país e que fomente a discussão para a situação da população negra no passado e no presente é de crucial relevância, e, com certeza, não se restringe a esse dia ou esse mês. Devemos estar, constantemente, abertos a refletir, a conhecer, a propor ações que vislumbrem uma ampliação do nosso olhar e um futuro de mais oportunidades e direitos para todas as pessoas, inclusive de serem capazes de deixarem suas marcas na história.