terça-feira, 23 de junho de 2015

Redes, conexões e identidade: uma história humana.

*Texto originariamente publicado no Jornal Tribuna Impressa de Araraquara 

Valquíria Tenório é professora universitária, 
socióloga e pesquisadora de cultura e 
história na temática etnicorracial, 
escreve neste espaço às terças.

São muitos e diversos os sentimentos dessa semana. São tantas notícias tristes, tantos acontecimentos que me fazem pensar em um retrocesso enquanto seres humanos, enquanto sociedade. Exemplos disso não faltam no Brasil e no mundo. Exemplos de intolerância e discriminação racial, religiosa, de gênero. Como faz falta conseguir se colocar no lugar do outro, entender que as pessoas podem ser, pensar, agir de forma diferente e nem por isso devem ser consideradas melhores ou piores que as outras. Há falta de tudo nestes acontecimentos, de compreensão, de solidariedade, de dignidade e mesmo de humanidade!!!!!

Felizmente, mesmo com tantos retrocessos é possível encontrarmos solidariedade e identificação entre as pessoas. Podemos encontrar a criação de redes e conexões entre elas ao compartilharem as mesmas experiências. E essas redes e conexões podem se formar nos momentos de tristeza e dureza da vida, como também nas fases de calmaria e alegria. 

Nesses últimos dias pensei muito sobre isso, principalmente, sobre algumas redes e conexões entre as pessoas, sobre suas origens e significados. São muitas as referências para se pensar esse assunto. Mas, a leitura do livro “O navio negreiro: uma história humana” do historiador Marcus Rediker, do qual tive o prazer de ser aluna na Universidade de Pittsburgh, Estados Unidos, me ajudou nessas reflexões. 

O livro é impressionante! Não trata especificamente do Brasil, mas sobre um elemento crucial e cruel para se realizar a “Passagem do Meio”, ou a travessia do Atlântico de milhões de africanos escravizados. Trata do navio negreiro, do tráfico, dos aspectos econômicos, mas também dos sociais, culturais e sobretudo dos aspectos humanos envolvidos neste processo.

Muitos dos relatos do que ocorria nos navios e que estão neste livro foram obtidos a partir de diários de marinheiros e capitães, mas há relatos de escravizados feitos por eles próprios e que chegaram a ser conhecidos. Esses relatos descrevem as crueldades inúmeras que ocorriam no navio, descrevem diversos dramas: da relação do capitão do navio negreiro com sua tripulação; da tripulação com escravizados e dos escravizados entre si. Esse material foi utilizado pelos movimentos abolicionistas na Inglaterra para traçar os retratos terríveis do que foi o tráfico negreiro e a travessia do Atlântico.

O que me impressionou no livro foi justamente o fato de ser “uma história humana”, para o autor o estudo do tráfico de escravos durante muito tempo se utilizou de livros de escrituração, folhas de balanços, gráficos, tabelas, ou seja, desumanizou uma realidade, uma história concreta, de pessoas, escondendo-se as responsabilidades e uma verdade cruel.

O livro permite notar a dinâmica de terror no navio, mas também as possibilidades de resistência que existiam naquela situação e que eram aproveitadas habilmente pelos cativos para a construção de laços de identidade, de redes, de conexões, porque no navio coexistiam homens e mulheres africanos de diferentes grupos étnicos, idades, falando línguas diversas. Muitos não se conheciam, alguns nem sabiam da existência de determinados grupos étnicos ali presentes. Porém, compartilharam no navio o mesmo drama, os mesmos sentimentos, a mesma situação que potencializou e originou laços sociais e de identidade. 

Se a comunicação não era possível pela linguagem verbal, usavam a linguagem corporal, os gestos e até a dança para o entendimento, assim organizavam-se para as inúmeras revoltas a bordo do navio. Os laços construídos no navio negreiro influenciaram as experiências e vidas dos escravizados no Novo Mundo, nas Américas, porque permitiu que essas pessoas de diferentes grupos étnicos e sociais cooperassem entre si, notassem que era possível e preciso se protegerem de alguma maneira, estabelecendo um entendimento, uma identificação, aprendendo a usar suas canções, aprendendo a língua do outro, criando novos códigos, usando seus corpos não só para resistir contra a violência física que ocorria no navio, mas para além dele, levando consigo essa experiência de poder se conectar, poder sentir e compartilhar com o outro, buscando se contrapor à destruição de sua humanidade e espírito.