terça-feira, 18 de agosto de 2015

Jongo: desafio, memória e registro da história.

Valquíria Tenório é professora universitária, 
socióloga e pesquisadora de cultura e 
história na temática etnicorracial, 
escreve neste espaço às terças.

“Jongueiro novo pergunta a jongueiro velho. Eu posso botar meu pé na terra que tem mistério”. Começo esse texto com esse verso e peço licença para falar um pouco dessa expressão cultural Afro-brasileira com todo o respeito que devemos ter aos mais velhos e todo cuidado que devemos ter para falar de assuntos que transcendem explicações teóricas, invadem a religiosidade, o mundo mágico, o tempo e o espaço. Não tem como não se arrepiar ao ouvir um ponto de jongo, é muita vibração, é lembrança de um passado, mas também resignificação do presente.

Em 15 de dezembro de 2005 o jongo, mais especificamente o “Jongo do Sudeste” recebeu o título de Patrimônio Cultural do Brasil conferido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Vale a pena conferir o site desse instituto para saber mais sobre outros patrimônios históricos registrados e para aprofundar uma pesquisa sobre o jongo, porque aqui o espaço é curto para tanto significado e importância desse legado da resistência da população negra desde o período escravista. 

A essa altura você já deve estar se perguntando, mas o que é o jongo afinal? O jongo é dança, é música, é ritual, é resistência. Segundo dossiê produzido pelo IPHAN, o jongo tem sua origem nos ritos e saberes de povos africanos, principalmente de língua bantu. Há variações no cantar e no tocar o jongo dependendo dos diversos grupos e comunidades que o realizam, podendo também assumir designações diferentes tais como angona, tambu, tambor, caxambu, podendo representar ou significar a totalidade da forma de expressão ou ter sentidos diferentes, quero dizer que essas palavras podem ser sinônimas para jongo, como podem não ser. Isso vai depender do contexto, da região onde essa prática cultural acontece. Por exemplo, caxambu pode ser o tambor de maiores dimensões dentro do conjunto instrumental que acompanha a dança em algumas regiões e comunidades, como pode ser o nome dado para toda a prática por outras. De todo jeito, o jongo está ligado aos escravizados que trabalhavam no cultivo do café e da cana-de-açúcar no sudeste do país.  

Era uma forma de comunicação entre os escravizados por meio de uma linguagem cifrada sem que os senhores desconfiassem ou entendessem o que estava sendo dito. Havia, dessa maneira, uma liberdade para se expressar conquistada pela capacidade de articulação e manipulação das palavras pelos jongueiros como se falassem em códigos. Havia muitos segredos sendo ditos durante o jongo que os senhores e capatazes nem desconfiavam, muitas lutas e revoltas sendo tramadas, ou seja, os escravizados nunca foram passivos à sua situação. Foram sim habilidosos, perspicazes e em resistência, cotidianamente.

Antigamente, nos terreiros das fazendas o jongo era praticado e frequentado apenas pelos mais velhos, pois seriam eles os donos da sabedoria, do poder, das palavras. Isso, porque o jongo envolvia o canto de pontos, de desafios em forma de música. Os jongueiros deviam responder aos desafios, travava-se uma disputa. Quando um ponto era lançado e nenhum jongueiro conseguia compreendê-lo dizia-se que estava amarrado. Atualmente, o improviso, os pontos novos e desafios não são tão comuns, uma vez que para a manutenção do mesmo houve transformações em seus modos de fazer. 
Com relação à dança, à sequência coreográfica do jongo também há variações nas diversas comunidades que o praticam, em algumas os percussionistas ficam próximos à roda e dela fazem parte, em outras ficam no centro da roda, às vezes a roda gira sentido anti-horário, outras vezes os participantes cantam e dançam em uma roda parada. Os praticantes podem entrar e sair da roda em pares, sendo sucedidos por novos participantes ou vários casais podem dançar ao mesmo tempo. É difícil descrever com palavras o jongo, é preciso sentir sua vibração! Vale a pena tentar se aproximar um pouco conferindo alguns vídeos na internet, por exemplo, o Jongo da Serrinha, de Vassouras no Estado do Rio de Janeiro, do Tamandaré no Estado de São Paulo.  

A prática recente do jongo está muito ligada às comunidades rurais e das periferias das cidades. Assim como outras expressões da cultura negra o jongo foi, muitas vezes, perseguido, permitido sob vigilância ou proibido, desvalorizando-se o ritual e seus praticantes, tática comum no Brasil de se conter manifestações de origem africana, tentar apagar registros, memórias, fazeres e saberes. Tática nunca alcançada completamente, e no caso do jongo está em seu cerne ser desafio. Portanto, mesmo diante das dificuldades ele continua vivo e precisa ser cada vez mais conhecido, valorizado, como um importante veículo da história dos negros que precisa sempre ser reconstruída e recontada.