terça-feira, 11 de agosto de 2015

O Batuque como expressão de cultura negra

Valquíria Tenório é professora universitária, 
socióloga e pesquisadora de cultura e 
história na temática etnicorracial, 
escreve neste espaço às terças.

Há muitas e diversas manifestações da cultura negra no Brasil e no mundo. Essa diversidade é tão rica, tão impressionante. São formas diversas de viver, sentir, de lutar, de louvar, de se relacionar com os outros e com o mundo. O repertório é vasto, é plural, está em constante movimento, recebendo e emanando influências em diversos espaços da sociedade. Impossível descrever cultura negra como uma contribuição à cultura nacional, ela é parte constitutiva dessa cultura. A discussão é ampla e longa, mas aqui gostaria de trazer um elemento geralmente entendido como manifestação de cultura negra, o batuque. 

O que é batuque? O que vem a sua mente quando ouve essa palavra? Um som? Uma dança? Pois bem, “trata-se do termo genericamente aplicado pelos portugueses aos ritmos e danças dos africanos. Do batuque dos povos bantos de Angola e Congo originaram-se os principais ritmos e danças da Diáspora Africana nas Américas, como o samba, o jongo, o mambo, a rumba etc.”. Esse é o significado de batuque encontrado na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana publicada por Nei Lopes, editora Selo Negro. E aqui faço uma pausa para sugerir que conheçam essa obra e muitas outras desse grande “compositor, intérprete de música popular, escritor, estudioso das culturas africanas, no continente de origem e na Diáspora”. Nei Lopes é ainda Bacharel em Direito e Ciências Sociais e também conferencista. Esteve em Araraquara para uma grande palestra realizada pela Secretaria Municipal de Educação em 2014. 

Voltando ao batuque... Então, essa palavra pode ser usada para designar diversas manifestações e ritmos da cultura negra, mas uma rápida pesquisa pela internet pode trazer também essa palavra ligada à religiosidade. Só quero destacar nesse ponto que para batuque pode haver uma série de outras palavras e outros significados, que ultrapassam a ideia que o português teve quando em contato com diferentes expressões do viver e sentir dos africanos. 

Araraquara teve um rei dos Batuques. Durante pesquisa que realizei no Arquivo Público Municipal, com objetivo de encontrar registros sobre a história do negro, encontrei menção a Damião dos Batuques, em jornal antigo da cidade publicado em 1936. Segundo consta no jornal, o popularíssimo Damião, como foi descrito e ainda denominado o Rei dos Batuques pedia ao jornal que se divulgasse a comemoração da Lei Áurea que aconteceria com um formidável e soberbo batuque realizado no largo da igreja São José. Na ocasião estariam presentes batuqueiros de São Carlos, Matão e Taquaritinga. Na época me interessou ter encontrado esse registro, uma vez que nenhum outro mencionava a história do negro em Araraquara. Entretanto, percebam que o registro tem a ver ainda com a Abolição da Escravidão, algo mais aceito e comum de ser registrado naqueles tempos.

Os batuques eram comuns durante o período escravista, muitos fazendeiros “permitiam” esses momentos nos dias de folga e de festa. Para os escravizados, os batuques eram momentos de encontro, de liberdade e de criação. Após a abolição as autoridades públicas viam essas manifestações como bagunça e tumulto, constantemente, reprimidas.

Em diversas cidades do Oeste paulista tais como Piracicaba, Tietê, Porto Feliz, Rio Claro e Araraquara foi possível notar a presença dessa manifestação. Lembro-me de alguns depoimentos que recolhi para minha pesquisa sobre o Baile do Carmo de referência aos batuques na Vila Xavier próximos à igreja de São Benedito e outros realizados por conta da festa junina. 

Com o passar do tempo esses batuques tornaram-se menos frequentes e se extinguiram em Araraquara, não sendo possível precisar quando isso aconteceu. Mas talvez possamos pensar que eles não se extinguiram totalmente, eles foram se modificando, pois na vivência dos grupos musicais, das bandas, do samba, do pagode, da religiosidade, dos bailes, os negros continuam vivenciando a experiência dos batuques, isto é, o encontro, a liberdade, o desafio, sempre negociando seu espaço, seus símbolos e sua identidade.