terça-feira, 1 de setembro de 2015

Capoeira: patrimônio, corpo e cultura.

Valquíria Tenório é professora universitária, 
socióloga e pesquisadora de cultura e 
história na temática etnicorracial, 
escreve neste espaço às terças

Em 26 de novembro de 2014, a Roda de Capoeira recebia oficialmente o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Reconhecimento internacional de um patrimônio do Brasil, patrimônio símbolo também da resistência e da origem negra no país. 

Quem já não se encantou e parou pra ver uma roda de capoeira, para ouvir o som do berimbau, instrumento simples, feito a partir de um galho de árvore, de maneira artesanal por muitos mestres e que traz uma sonoridade única e linda. O meu coração bate diferente, acompanha a pulsação da música, acompanha o ritmo quando eu me aproximo de uma roda. 

Há alguns anos fui praticante de capoeira. Devo admitir que nunca ultrapassei o nível básico, inicial, nunca tive muito alongamento ou domínio dos golpes, mas isso nunca me impediu de praticá-la, de ser envolvida por ela. O que me encantava àquela época e ainda me encanta hoje é a possibilidade de aprender sobre a história de um povo, vivenciar a criatividade e a beleza das construções, das manifestações dos africanos e seus descendentes, de meus antepassados aqui no Brasil. Porque a capoeira é uma invenção dos africanos no Brasil. Nunca pensei em ser uma exímia capoeirista, mas pensava sim em ganhar a experiência, sentir no corpo a história, repetir movimentos criados há muitos anos, com diferentes significados. 

Essa mesma motivação fez com que meu filho fosse apresentado à capoeira, essa grande e importante manifestação cultural afrobrasileira. Ele se encantou tal como eu! Pela música, pela possibilidade de superar limites, por aprender histórias, aprender sobre os instrumentos que dão o ritmo nessa manifestação e sobre como eles são feitos. Também, pela possibilidade de brincar com o corpo, ficar de ponta cabeça, aprender novas palavras, ser dono de seu próprio corpo e do que ele é capaz de fazer. Tudo isso amparado por um mestre atencioso e habilidoso em passar o que sabe aos pequenos.  Dessa maneira, penso que estou criando as condições para que meu filho não tenha preconceitos com relação a essa arte-dança-jogo-luta-esporte, porque a capoeira é tudo isso e também é história. 

A capoeira é uma criação do período escravista e uma forma de sociabilidade, de solidariedade entre os escravizados, uma forma de defesa, uma maneira de controlarem a violência que viviam. Ser um exímio capoeirista era também ser temido pelos senhores. Em 1890 por meio de um decreto a prática da capoeira foi proibida, principalmente, porque fazia medo e perturbava a nova ordem estabelecida no regime republicano. Quem fosse pego a praticando estaria sujeito a pena de prisão de dois a seis meses. Segundo Nei Lopes, “em 1937, o capoeirista baiano Mestre Bimba conseguia, depois de uma exibição primorosa, que o presidente Getúlio Vargas descriminalizasse a luta e a oficializasse como prática de Educação Física”. Mas, uma visão estereotipada que havia sobre a capoeira e seus praticantes permanecia e de certa forma ainda permanece na cabeça de muitas pessoas, me parece que algumas sensações, sentimentos não se dissipam totalmente com o tempo, mas se reconfiguram. Algo que pensávamos superado ainda pode estar muito presente. É preciso que estejamos sempre repensando os conceitos, as maneiras de se interpretar a realidade. 

Nesse contexto, a capoeira tem muito a dizer e a ensinar sobre a história do negro no Brasil. Muitas de suas músicas cantadas há tantos anos por seus praticantes trazem o registro do que os negros viviam, trazem os relatos de uma época que nos faz refletir sobre o país de hoje, das muitas interdições que essa população vive cotidianamente. 

A capoeira enquanto prática tornou-se para muitos apenas um esporte, afinal a próprio jogo muda de acordo com o andamento da roda, mas não pode deixar de estabelecer essa relação com a história, com cultura e também com uma tradição de luta e de resistência.