terça-feira, 8 de setembro de 2015

É preciso mais afrorealismo

Valquíria Tenório é professora universitária, 
socióloga e pesquisadora de cultura e 
história na temática etnicorracial, 
escreve neste espaço às terças

Em agosto de 2005 tive a oportunidade de participar do VIII Fábrica de Ideias: Curvo Avançado sobre Relações Raciais e Cultura Negra do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia. Foi uma experiência incrível, primeiro por conhecer um pouco da Bahia, sentir a vibração de Salvador e Cachoeira, conhecer pesquisadores de quase todos os estados brasileiros, de outros países das Américas e do continente africano. Foram 30 dias intensos de muito aprendizado, debates, trocas e amizades que se solidificaram e existem até os dias de hoje. O curso está diferente do que vivenciei em 2005, mas ainda existe e tem seleção de participantes, anualmente. Vocês devem estar se perguntando: mas, por que ela está falando disso? Porque esse curso foi muito importante para solidificar a maneira como penso algumas questões hoje.

Foram muitos temas tratados, mas quero falar com vocês sobre o Módulo Pensadores Africanos ministrado por Carlos Lopes, grande intelectual nascido em Guiné-Bissau, atual secretário geral adjunto das Organizações das Nações Unidas (ONU), secretário executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África, na época do Curso era representante-residente do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). A semana que tivemos de aula com o Dr. Carlos Lopes foi incrível! A ideia de buscar sempre o equilíbrio nas análises, nas reflexões sobre o continente africano ficou muito óbvia após esse curso. O acesso a uma bibliografia e interpretações atuais e conectadas à história mundial fizeram toda a diferença. 

Depois dessa experiência fico bastante incomodada quando vejo uma visão do continente africano composto por 54 países como se fosse apenas um. Também me incomoda a visão da miséria, da fome, das epidemias, tudo isso existe, mas a mídia trabalha intensamente apenas com essa visão, com uma imagem pessimista. Em palestra recente no Brasil o Dr. Carlos Lopes mencionou que “a narrativa sobre a África está marcada por uma visão extremamente pessimista, e cada vez que acontece qualquer coisa essa visão pessimista é alargada ao extremo que é difícil de imaginar.”. Só para dar um exemplo, ele mencionou a epidemia de ebola recente no continente e o quanto essa visão pessimista é forte. Surgiu no Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, referência mundial em pesquisas sobre doenças que a epidemia se alastraria e que um milhão de pessoas seriam atingidas. Até o momento, Dr. Lopes diz que o número está em 19 mil casos. É óbvio que 19 mil pessoas sofrendo e morrendo é um dado importante, mas a estimativa de um milhão de afetados é um exagero, fundamentado em visões e dados sempre pessimistas sobre esse continente.

Pergunte a algumas pessoas o que lhes vêm à mente quando ouvem a palavra África. Provavelmente, a visão da miserabilidade do continente estará presente. 

Eu não sou especialista em África, mas estou sempre alerta para repensar alguns conceitos e algumas imagens que se construíram sobre esse continente. E a imagem da inferioridade africana é ainda muito comum e precisa ser desconstruída, pois serviu para legitimar a estrutura colonial. A história da África foi por muito tempo entendida como inexistente antes da chegada do europeu. A visão era a de que não havia saber, produção de conhecimento africano ou quando havia vinculava-se a algum aprendizado com europeus e nunca o contrário. Assim, a estrutura colonial exercia e legitimava seu domínio, também pautada em considerações e explicações bíblicas. Triste pensar que ainda hoje essa visão pode ser encontrada. Como ensinar sobre esse continente sem cair na armadilha de uma interpretação única e pessimista? Ou também em uma visão única e otimista, da supervalorização da história africana? 

É preciso ter um afro-realismo, buscar um equilíbrio, buscar fontes diversas, avaliar o contexto geral, pesquisar, debater e sempre estar aberto para desconstruir visões e conhecimentos cristalizados. É difícil, mas é necessário! Segundo o Dr. Lopes, do ponto de vista macroeconômico a África é o continente que mais cresce no mundo, mas esse crescimento não está gerando os benefícios sociais que se espera. Ele fala de um paradoxo: é a região que mais cresce, mas é uma região que ainda tem muitos problemas. Há cerca de 100 milhões de africanos afetados por conflitos, mas há cerca de 900 milhões que não são. Para ele o afropessimismo saiu de moda, o afro-otimismo também não ajuda a entender esse continente, o que a África precisa é de afrorrealistas. 

Não há como ensinar as histórias e a multiplicidade cultural africana e afrobrasileira sem se levar em conta essa necessidade, de mais afrorrealismo.