terça-feira, 20 de outubro de 2015

Ações afirmativas, oportunidades e mérito.

Valquíria Tenório é professora universitária,
socióloga e pesquisadora de cultura e
história na temática etnicorracial,
escreve neste espaço às terças

Eu vou começar esse artigo com o trecho final do anterior, relembrando a ideia de encerramento do artigo da semana passada. “É preciso que reflitamos sobre a desigualdade, sobre a maneira natural que a vivenciamos cotidianamente e sobre que tipo de desenvolvimento nós queremos para o Brasil.” Quando tratamos de ações afirmativas esses pontos deviam ser levados em consideração. 

Nos últimos meses como colunista nesse jornal venho tratando, semanalmente, de diversos temas que remetem à história e cultura afrobrasileira, melhor dizendo, tratando da história do Brasil, ao menos, uma história que devia ser recontada, personagens que deviam ter um posicionamento diferente no registro oficial, um lugar e visibilidade. 

Porque esse não registro é fruto de desigualdades diversas e atua para a contínua promoção das mesmas ou de novas desigualdades, pois quando outras histórias existem e não fazem parte da nossa compreensão de povo brasileiro, ou quando o silenciamento e a invisibilização de personagens, situações, registros ocorrem e prejudicam e/ou inviabilizam a elaboração de uma visão mais plural de nossa formação, com o devido registro da importância de diferentes atores, eu penso que já temos um tipo de desigualdade.

Como fazer para interrompermos o processo de criação e recriação de desigualdades, de diferença de acesso à educação, saúde, moradia, alimentação, emprego, lazer? Será que basta tratarmos igualmente os desiguais?

Penso ser ponto pacífico a necessidade de haver oportunidades para todos, alguns diriam oportunidades iguais para todos, mas, talvez devamos pensar em mais oportunidades para aqueles, historicamente, posicionados na base da sociedade, cujas estatísticas apontam os índices mais baixos. Aqueles cujo acesso aos bens sociais é negado ou dificultado, aqueles com maior vulnerabilidade. 

É nesse nível que penso em ação afirmativa de cunho racial, ou seja, se olhamos os dados conseguimos visualizar as diferenças entre brancos e negros no Brasil em diversos indicadores socioeconômicos. A população negra vem sendo historicamente marginalizada, resquícios da escravidão, mas atualização de um racismo presente, de uma estruturação da sociedade em que poucos têm muito e muitos têm pouco. Onde a não participação de negros em diversos setores da sociedade de maneira proporcional a sua quantidade censitária é algo não problematizado, ou ainda, em cargos e cursos altamente valorizados é visto como falta de interesse nos estudos, falta empenho ou mérito. 

Muitas pessoas afirmam, por exemplo, sobre o ensino superior que o mais justo é o processo seletivo de ingresso nas universidades, o conhecido vestibular, e esse seria o meio para comprovar o mérito de um candidato. 

Há quem afirme apenas quem tem mérito devia entrar. Excelente, concordo, mas se todos estiverem em uma relação de igualdade de condições. Caso contrário, não dá para se medir mérito. Pensem comigo, quem tem mais mérito, aquele com acesso a boas escolas, livros, viagens, tempo apenas para o estudo, acesso à internet, acesso aos espaços, alimentação adequada, apoio familiar, muitas vezes, tradição na família em ingressar em determinados cursos, acesso ao conhecimento de como funciona um processo seletivo ou aquele que tem pouco ou nada de nenhum desses itens, que trabalha oito ou mais horas por dia e quando sai do trabalho corre para o cursinho, quando encontra um popular, e mesmo ouvindo de todos que não vai passar, vai lá e presta o vestibular. Esses dois candidatos estão em iguais condições para se preparem para o vestibular? O vestibular é justo para os dois?

Essa discussão sobre mérito e se as ações afirmativas para negros são justas é longa e intensa. Mesmo o Supremo Tribunal Federal tendo decidido por sua constitucionalidade a discussão ainda é dura e são muitos aqueles que se colocam contra essa política. 

Entendo ação afirmativa como a busca na alteração da representatividade no cenário universitário e, mais, na diversidade que devemos encontrar na universidade e fora dela, porque é importante e urgente encontrar profissionais que representem a nossa população de maneira mais real, atuando na autoestima, reconhecimento e valorização da população negra, que possam atuar para um desenvolvimento menos desigual no Brasil.