terça-feira, 27 de outubro de 2015

O tempo e os guardiões da memória

Valquíria Tenório é professora universitária,
socióloga e pesquisadora de cultura e
história na temática etnicorracial,
escreve neste espaço às terças

A semana passada foi de altos e baixos, sensações díspares, tensões, reflexões, balanços. Completei mais uma primavera e preciso dizer a vocês que tenho refletido muito sobre o envelhecer, sobre a vida que vai passando, o tempo que parece voar e levar com ele lembranças, pessoas, leveza. Deixa saudades de cheiros, sensações, pessoas, de tempo para tudo e para nada. É a vida sempre seguindo, sempre!

Minha vida mudou muito nos últimos dez ou quinze anos. Sou grata a muitas mudanças, vezes boas, vezes nem tanto. O ingresso na pós-graduação foi um divisor de águas, tive a oportunidade de aprender e conhecer tantas pessoas, principalmente quando iniciei minha pesquisa de mestrado e depois de doutorado em sociologia. 

O interesse em compreender ou reconstruir parte da história da população negra em Araraquara a partir do Baile do Carmo, evento tradicional, anualmente, realizado por essa comunidade, me ensinou a lidar com o tempo: o meu e o dos outros, o tempo presente, mas, principalmente, o passado. Foi possível e necessário fazer conexões com a memória, lembranças, viajar no tempo do outro, relembrar com eles outros momentos.

E como esse trabalho, de ouvir e vivenciar outros tempos, foi prazeroso! Justamente, pelas pessoas, pelas vidas e experiências narradas que me ajudaram não apenas a escrever meus trabalhos acadêmicos, mas me deram um lugar naquela comunidade de pessoas e me ensinaram a recontar a minha própria história. 

Já falei um pouco de minha pesquisa sobre o Baile do Carmo para vocês, mas volto ao tema, porque as pessoas as quais tive contato, as quais cederam parte de seu tempo para conversar comigo, uma pesquisadora iniciante naquele momento, fazem parte da minha história e do que sou hoje.

Para mim a fase mais feliz da pesquisa foi quando tive a oportunidade de realizar o trabalho de campo, no meu caso a realização de entrevistas. Ouvir o outro foi um aprendizado enriquecedor para a pesquisa e para a vida. Uma habilidade aprimorada com a frequência, disponibilidade e doação do narrador e do ouvinte. Sim, doação de tempo, de lembranças, de choros e risos.

Foram diversos anos tentando aprimorar essa habilidade. Os primeiros que me ensinaram a ouvir foram os mais velhos, desde menina gostava de ouvir histórias e conversar com eles, posso dizer que meu avô sempre foi e será um ícone na minha vida, um grande contador de histórias, no entanto, ele não tinha a vivência do evento que eu decidi estudar e também já não estava mais entre nós quando iniciei a pesquisa. Consegui o contato com uma pessoa e esta me indicou outras, muitas vezes, mencionando o meu pertencimento etnicorracial como um motivo a mais para participarem da pesquisa. Aos poucos, construiu-se um laço, uma identificação que trouxe conforto e confiança ao grupo de pessoas entrevistadas. Eram elas que guardavam as lembranças, eram capazes de rememorar um passado, mas com os pés fincados no presente. Foram elas que abriram suas casas, foram hospitaleiras e dividiram comigo suas memórias. 

Sinto falta desse tempo... de quando ele me deixava apenas ouvir. E vou com o passar dos anos sentindo falta também das pessoas idosas que vão aos poucos nos deixando, levando consigo muitas lembranças, memórias, histórias, vida. Segundo Amadou Hampaté-Bâ, um nome importante para se entender a tradição oral africana, escritor, etnólogo, linguista, nascido no Mali, “toda vez que um velho morre em África é como se se queimasse uma biblioteca.” Essa visão que a tradição africana tem do velho está presente na tradição Afro-brasileira, com certeza e esteve muito presente nas minhas pesquisas e está na minha vida. 

Essa semana, uma pessoa que me recebeu com tamanho carinho, para uma doce entrevista, que dividiu comigo suas lembranças do Baile do Carmo, de sua juventude, velhice e de sua família partiu dessa nossa existência levando consigo diversos livros.  É uma biblioteca que se vai, uma família e amigos que ficam, mas precisam seguir, lembrando-se, vivendo e repassando os ensinamentos, a cultura, as histórias e os conhecimentos adquiridos de geração a geração.

Tenho certeza que nos encontraremos em outro plano, outro tempo. De algum lugar Dona Nair Damásio Claudino continua zelando pelos seus.