terça-feira, 6 de outubro de 2015

Carolina Maria de Jesus: uma escritora instigante

Valquíria Tenório é professora universitária,
socióloga e pesquisadora de cultura e
história na temática etnicorracial,
escreve neste espaço às terças

Faz algum tempo que penso em escrever sobre Carolina Maria de Jesus, uma grande escritora, mulher, negra, guerreira, sábia, com pouca escolarização. Mineira de Sacramento, nascida, provavelmente, em 1914, migrando para São Paulo após a morte da mãe em 1937. Carolina construiu sua casa com madeira, lata e papelão na favela do Canindé, lugar que ela designava como “quarto de despejo”, título de seu primeiro livro publicado, uma metáfora referindo-se à favela como o lugar onde a sociedade deposita o que não quer mostrar na sala de visitas. A história de vida de Carolina é repleta de idas e vindas, altos e baixos, de uma movimentação constante pela sobrevivência dela e de seus três filhos. A escritora recolhia papel nas ruas da cidade de São Paulo, remexia nos lixos e quando encontrava livros estes eram como tesouros guardados e lidos. A escritora lia compulsivamente tudo, todos os gêneros e escrevia muito. Acredita-se que ainda existam textos inéditos seus perdidos pelas mudanças que a vida lhe obrigava a fazer. 

Carolina é uma escritora instigante, seus textos trazem as imprecisões ortográficas de alguém que estudou apenas os dois primeiros anos do antigo ensino primário. Há relatos de que ao aprender a ler, ela saiu da escola e lia todas as placas e tudo que lhe aparecia pela frente, mas ao chegar a sua casa não havia o que ler. Está aí uma realidade ainda encontrada nos dias de hoje, casas onde não há livros, muitas vezes não apenas pelo desinteresse, mas pelas dificuldades enfrentadas por muitas famílias nesse Brasil afora, quer na recepção ou aquisição de livros. Carolina, no entanto, aproveitava sua mobilidade pela cidade e estava atenta as pérolas que podia encontrar para o seu sustento físico, mas também intelectual.

“Quarto de despejo: diário de uma favelada” publicado em 1960, depois de uma reportagem do jornalista Audálio Dantas na favela do Canindé, retrata a sua vivência na favela, seu testemunho, a dureza e as agruras da vida por alguém que experimentava a miséria, a fome, diariamente, bem de perto e por dentro, mas que tinha forças para exprimir essa dureza em palavras. É importante conhecermos, lermos Carolina, não apenas para entendermos o contexto histórico da São Paulo da metade do século XX, mas também para descobrirmos uma escritora visceral, intensa, direta. Nos três primeiros dias após o lançamento “Quarto de despejo” vendeu 10 mil cópias, seis meses depois alcançava a marca de 90 mil exemplares vendidos. Foi traduzido em 14 idiomas e distribuído em 40 países. Foi com certeza o livro de maior sucesso na época e precursor de uma literatura afrobrasileira. Carolina escreveu outros livros, romances, poemas, artigos para jornal, fez música, peças de teatro, marchinha de carnaval. Mudou-se da favela para um bairro classe média, sendo discriminada pela vizinhança muda-se para um sítio em Parelheiros vivendo mais uma agrura: a de alguém que não estava no lugar reconhecido para ser ocupado por uma mulher negra.

Carolina precisa ser popularizada, lida! Em 2014 ocorreram as comemorações de  centenário de seu nascimento e muitas ações foram empreendidas no sentido de se trazer à tona seus escritos, sua literatura, realizar novas análises, resgatar documentos, colocar à disposição fotos e documentários sobre sua vida e obra. É preciso motivar novos leitores, para que a sua literatura não seja esquecida e, mais, para que ela ganhe o espaço merecido na literatura brasileira. Para a autora: “Uma palavra escrita não pode nunca ser apagada. Por mais que o desenho tenha sido feito a lápis e que seja de boa qualidade a borracha, o papel vai sempre guardar o relevo das letras escritas. Não, senhor, ninguém pode apagar as palavras que eu escrevi.” Que força tem essa fala de Carolina, da importância que ela mesma atribui aos seus escritos. Ela diz ainda: “Só passei dois anos dentro de uma escola. Isso foi lá em Minas, onde eu nasci. Foi pouco tempo, mas o suficiente pra eu descobrir que as palavras, se não conseguem mudar o mundo, servem pelo menos para contá-lo ou até inventar um mundo novo.”

A historiadora Profa. Dra. Elena Pájaro Peres tem uma pesquisa muito interessante sobre a obra de Carolina de Jesus e afirma a necessidade de revisitá-la sob diversos ângulos e fazer uma leitura da autora retirando-a do universo de carência e a colocando no universo de riqueza cultural, de nobreza, dignidade e soberania, principalmente, se a análise se detiver em outros textos para além de “Quarto de despejo”, tais como “Provérbios” e “Diário de Bitita” inicialmente publicados na França em 1982 e só depois no Brasil. Elena conseguiu resgatar na escrita de Carolina uma ancestralidade africana, a partir de seus escritos sobre sua infância e a relação com seu avô. “Consegue-se perceber conexões com tradições africanas que davam muita importância à palavra escrita”.

Vale destacar que o Museu Afro Brasil, instalado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo abriu no dia 03 de outubro a exposição “Carolina em nós” idealizada pelo grupo Ilú Obá de Min e patrocínio da Caixa Econômica. Vida e obra da autora são apresentadas em painéis, fotos e cenários.

Carolina Maria de Jesus é com certeza uma escritora instigante, merece muitas análises, reflexões e atenção.