terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Tolerar apenas não basta, devemos conhecer, conviver e respeitar.

Valquíria Tenório é professora universitária,
socióloga e pesquisadora de cultura e
história na temática etnicorracial,
escreve neste espaço às terças.

Venho pensando em escrever sobre religiosidade afrobrasileira desde o início das publicações de meus artigos nessa coluna, começo esse processo nesse texto. Não sou iniciada em nenhuma religião de matriz africana, mas falo como alguém sempre preocupada em mostrar a necessidade de ampliarmos nossos conhecimentos, superarmos nossos preconceitos, abrirmos nossas mentes e respeitar o outro.

Tenho familiares e amigos católicos, muçulmanos, evangélicos, testemunhas de Jeová, umbandistas, candomblecistas, espíritas. Também tenho amigos ateus e agnósticos. E há muitas variações em algumas dessas designações, denominações, prova de uma pluralidade sempre presente. Sou capaz de gostar e conviver com todos eles. Gosto muito de sentir a força da fé das/nas pessoas, de sentir a energia delas, principalmente, se essa energia traz algo de positivo e bom para suas vidas e daqueles que as cercam. Essa diversidade deve fazer bem, porque diversas são as pessoas. A diferença de sentimentos, de percepções do mundo me parece algo intrínseco do ser humano. Não é possível querermos que as visões de existência de um mundo sobrenatural sejam apenas UMA visão. Por que gastar tanta energia em tal empreendimento? Por que não se importar mais em viver a espiritualidade ou a falta dela em harmonia com os demais e sem imposições? Por que não se importar em viver bem sem tentar destruir as experiências dos outros? Não costumamos ouvir que o Brasil é o país da harmonia e paz no quesito religiosidade?

Essa harmonia ou paz não está se estendendo às religiões de matriz africana, que desde há muito tempo têm sofrido ataques e perseguições. Não basta tolerarmos a religiosidade alheia, não gosto dessa palavra nessa situação, penso que devamos respeitar, acolher, conviver, conhecer as diferentes religiosidades, mas, principalmente, a religiosidade de matriz africana ou afrobrasileira, porque são elas as mais perseguidas, são seus adeptos os mais discriminados, na maioria das vezes, duplamente, por serem negros e praticantes. 

A religiosidade de matriz africana no Brasil tem suas raízes no período escravista, têm suas interdições desde que os africanos foram trazidos ao país, pois havia necessidade de se apagar as lembranças daqueles arrancados de sua terra de origem, havia necessidade de se impedir as possibilidades de conexão e entendimento entre os diversos grupos aqui presentes, impedir a reunião religiosa de negros apagando seus rituais, seus cultos, suas maneiras de se manterem conectados aos seus ancestrais. Desde o período colonial essas expressões foram entendidas como feitiçarias, práticas demoníacas, religião de escravos e, por isso, não reconhecidas, combatidas, vigiadas e como tudo que diz respeito ao mundo do negro no Brasil, invisibilizadas, estigmatizadas. 

Segundo Muniz Sodré, “o terreiro (de candomblé) afigura-se como a forma social negro-brasileira por excelência, porque além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar originário de força ou potência social para uma etnia que experimenta a cidadania em condições desiguais”. Ou seja, esse espaço de religiosidade pode ser entendido como um espaço de força, capaz de propiciar uma sensação diferente da vivenciada cotidianamente pelos negros nos outros espaços. Eu acredito que seja possível nesses espaços vivenciar liberdade, conforto, coletividade, paz. 

No entanto, as notícias de antes e de hoje demonstram as dificuldades que muitos espaços e praticantes passam para manterem suas tradições e sua religião. A situação é tensa, há uma guerra por fiéis, por legitimidade, por manutenção de uma dada ordem de exclusão e invisibilização de tudo que diz respeito ao universo afrobrasileiro. Na madrugada do dia 27 de novembro último um terreiro de candomblé foi incendiado no Distrito Federal, dois outros tinham sido atacados em setembro em Goiás. Uma jovem de 11 anos foi apedrejada após sair de um culto de candomblé no Rio de Janeiro em junho desse ano. Os casos são muitos em várias regiões do país mostrando que a convivência religiosa no Brasil não é harmoniosa como se pensava.