terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O poder e a importância do lembrar

Valquíria Tenório é professora universitária,
socióloga e pesquisadora de cultura e
história na temática etnicorracial,
escreve neste espaço às terças.

Essa semana eu tive o feliz reencontro com alguns amigos e amigas de minha infância e adolescência mais de 20 anos após termos nos formado na 8ª série do que chamávamos de curso ginasial. Reencontramos nessa ocasião dois de nossos professores, ambos muito estimados. Foi um evento simples, um reencontro em frente a nossa antiga escola, mas repleto de significados. Em outro dia combinamos de tomar um sorvete e foi duplamente saboroso o reencontro. Para mim que em pesquisas tenho lidado com a memória alheia, foi um mergulho em minha própria memória. 

Em tempos de esquecimentos múltiplos conscientes e inconscientes é tão válido um reencontro com o nosso passado, mas não como ele era, pois é impossível voltarmos a ele dessa maneira, mas um passado revivido com a lucidez de um pouco mais de maturidade. Voltar a algumas ações, fatos, pessoas, mas com o olhar de hoje, por vezes mais amplo, mais profundo, mais atento. Foi com esse olhar que passamos a falar sobre como víamos nossos professores, a escola e seu pátio, as provas, os jogos de queimada, as viagens. O tempo passou, mas de alguma maneira voltamos ao passado. E essa volta nos rejuvenesceu a todos, pois parecíamos os de antes, 20 e tantos anos mais jovens, gritando, sorrindo, falando todos ao mesmo tempo.  

Que força tem a memória! Que força tem o compartilhar. Sim, porque a memória não é apenas individual, ela é também coletiva. Eu preciso do outro para apoiar as minhas lembranças, para acessar aquelas que, aparentemente, estavam perdidas no passado. Muitas foram novamente acessadas, porque memória também é trabalho, é estar disposto, é se esforçar, é preciso se apoiar nas lembranças alheias para reconstruir um todo menos impreciso. Algumas vezes, conseguimos relembrar, em outras não. É um exercício que ao passar da idade pode ser mais ou menos prazeroso, pois há aquelas lembranças que queremos esquecer, ou muitas vezes aquelas que não conseguimos lembrar, mesmo que os outros nos deem todas as orientações de como algum fato ocorreu. Um fato pode marcar de um jeito diferente as pessoas e ficar registrado ou não em sua memória. 

Esse reencontro com os tempos da escola, essa “volta” ao passado me fez pensar ainda mais sobre memória individual e coletiva, me fez pensar sobre o que registramos enquanto grupo, enquanto sociedade, me fez pensar sobre memória nacional, sobre existir uma disputa entre as diferentes e variadas memórias dos fatos, ações, datas vindas de diferentes grupos, pois cada um pode ter uma interpretação diferente sobre os fatos acontecidos no passado, cada grupo pode ter uma perspectiva, estar em uma determinada posição e mais, pode ter vivenciado um acontecimento de uma maneira específica e nem sempre o reconhece quando ele se torna história oficial.

Há diversos grupos de pesquisa no Brasil e pelo mundo afora pensando em uma revisão da história e como ensiná-las nas escolas, porque é necessário termos em mente que não há nada de natural na reconstrução do passado. Se olharmos para nossa história oficial podemos perceber que ela apresenta a visão de um determinado grupo, daqueles que detém o poder de registrar, por isso, o protagonismo de muitos personagens e grupos não estão ou não estavam presentes. A discussão é longa e complexa, mas importante para pensarmos diversas questões, inclusive o racismo brasileiro que se alimenta ou é, muitas vezes, o alimento que atua na manutenção de uma história que propaga apenas uma visão, apagando ou não enxergando o protagonismo da população negra e indígena na construção do país. No entanto, para além do que a história não registra existem as vivências e a manutenção dentro dos grupos de suas lembranças e o fortalecimento de suas identidades. 

Juntei a essas reflexões também a notícia de falecimento de um importante ator e artista plástico, ativista do movimento negro, o Antônio Pompeo, encontrado morto na semana passada em seu apartamento no Rio de Janeiro aos 62 anos de idade. Segundo a também atriz Zezé Motta, em nota por meio das redes sociais, o ator estava triste, sofrendo pela falta de oportunidades de trabalho, pelo esquecimento. Muitos comentários nas redes sociais destacaram a falta de divulgação pelos meios de comunicação de seu falecimento, a falta de homenagens e mesmo a falta de oportunidade para um ator tão expressivo como ele. Fiquei pensando ainda sobre as pessoas que são lembradas e esquecidas pelos meios de comunicação e pela história. Sobre como a lembrança é algo importante na manutenção de nossas próprias vidas