terça-feira, 19 de janeiro de 2016

“Representatividade importa sim!”

Valquíria Tenório é professora universitária,
socióloga e pesquisadora de cultura e
história na temática etnicorracial,
escreve neste espaço às terças.

Foi com essas palavras que Liniker Barros, um artista araraquarense, encerrou seu primeiro show na cidade, no último dia 15, no Sesc. Era possível sentir a vibração e emoção nele e na plateia ávida para ver, compartilhar, vivenciar sua presença, sua performance, seu jeito e talento finalmente na terra natal. Liniker já é sem dúvida um fenômeno, com mais de um milhão de visualizações de seus vídeos nas redes sociais, com turnê nacional em andamento e uma internacional em vista. 

O show foi excelente. A interação no palco e fora dele demonstrou estarmos diante de um artista completo, que domina o espaço, que sabe utiliza-lo com harmonia, um artista que esbanja jovialidade, criatividade, que traz em si marcas dos antepassados em diálogo com um presente, por vezes intragável, opressor, mas também desafiador. Liniker transborda esse diálogo e se joga no desafio de ser e não ser. De longe, de onde eu estava posicionada, eu sentia um frescor, sentia também o quanto ele próprio se deliciava por ser e estar ali, vibrando e fazendo vibrar a plateia. E se em uma de suas canções ele diz “deixa eu bagunçar você” com certeza é isso que ele fez e fará por onde passar. Querendo ou não, ele bagunça alguns tabus, ele rompe e expande fronteiras e definições. 

Ele dá mostras de sua força durante todo o show e o encerra buscando deixar uma mensagem, ressaltando a existência de muitos talentos locais, da necessidade de valorizar o que está ao nosso lado, tão perto. E ainda, não se furta em empoderar seu pertencimento etnicorracial, sua negritude e ancestralidade no corpo, no todo. Também, demonstra que não se limita ao gênero ou às visões rígidas do que seja o feminino e o masculino. De fato, crava fundo a importância da representatividade. 

Essa postura sólida, de um discurso alinhado com a necessidade de repensarmos nossos parâmetros, nossas ideias e posições me fez gostar ainda mais desse artista e me fez desejar que sua carreira seja longa, visível, e surpreendente. Também, me fez pensar qual deve ser a postura de artistas, pessoas na mídia, pessoas que têm a capacidade de mobilizar, serem ouvidas e seguidas por milhares de outras. Em que elas podem contribuir ou não para algumas causas. Em que suas posturas podem alterar algumas situações.  

“Representatividade importa sim”, essa frase fechou a noite, coroou o show. Nesse mundo de hiperconectividade, onde é possível saber sobre tudo e não saber nada ao mesmo tempo, onde estamos próximos mesmo distantes, as identidades continuam presentes, não foram apagadas, estão em incessante transformação. Não conseguimos ainda abrir mão de todas as identificações e identidades que nos marcam, que nos completam. Podemos eleger aquelas que serão empoderadas, o que eu estou querendo dizer é que em alguns momentos somos obrigados ou queremos nos definir e podemos fazê-lo empoderando uma ou outra identidade: mulher, negra, educadora, mãe. E para embaralhar mais nossas ideias essas categorias podem ser entendidas ou ter significados diferentes em sociedades e épocas distintas.

Discutimos rótulos, definições, mas não conseguimos nos livrar deles, totalmente. Por exemplo, correu pelas mídias sociais, com milhares de curtidas e compartilhamentos a foto de um menino segurando um boneco do personagem Finn do filme Star Wars, interpretado pelo ator inglês John Boyega. Matias Melquíades  é um menino negro, de 4 anos, que segundo a mãe, a historiadora Jaciana Melquíades, se sentiu imensamente feliz ao entrar em uma loja de brinquedos e encontrar um boneco que se parecia com ele. Ele se viu ali representado! Eu fiz o exercício de entrar em uma loja de brinquedos nesse fim de semana e olhar para bonecos e bonecas,  mas também para as fotos que estampam as embalagens de diversos outros brinquedos. Façam esse exercício, vocês verão que não há uma representatividade condizente com a formação da população brasileira nessas embalagens, para ficar apenas nesse tema. Parece que estamos na Dinamarca e não no Brasil. 

Fiquei me perguntando de que maneira essa ausência de representatividade impacta a vida de crianças negras e também brancas? De que maneira essa invisibilidade foi construída e tem sido mantida? 

Por isso, quando eu ouço um artista dizer que representatividade importa sim, eu escuto de fato um grito de dor antes silenciado, um grito por mais justiça, visibilidade e mudança.