quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

A maternidade e o racismo

Valquíria Tenório é professora universitária,
socióloga e pesquisadora de cultura e
história na temática etnicorracial,
escreve neste espaço às terças.

A maternidade mudou minha percepção do mundo, ou melhor dizendo, sinto que ela aflorou uma outra sensibilidade em mim. Desde o primeiro momento em que me descobri mãe, ao ver um pontinho no ultrassom, com apenas 6 semanas de existência dentro de mim, algo mudou. Ali estava sendo gestado uma nova vida, repleta de possibilidades. Ali também começava um auto conhecimento ainda maior, afinal era a primeira vez que meu corpo e todo o meu ser vivenciava a experiência de ser mãe, de zelar por um outro ser. 

E esse momento da gestação para mim foi especialmente prazeroso, de preparação, sem ansiedade,  com muita alegria, engordando, engordando como nunca antes em minha vida, sempre vivi abaixo do peso considerado normal, não por vontade, mas em parte pela genética. O corpo estava se preparando para ajudar aquele novo ser a ganhar força, na verdade quanto mais ele crescia mais força me dava em troca e vivíamos esse círculo virtuoso. 

Eu tive total assistência, eu tive condições financeiras de ter comigo uma doula, doutora em obstetrícia, experiente e carinhosa, toda uma equipe ciente do cuidado que se deve ter com outro ser humano. Tive condições de realizar meu parto em outra cidade, pois a situação, para um parto natural em Araraquara, era pouco favorável naquele período e acredito, segundo relatos de muitas conhecidas, que ainda é, atualmente. Sim, eu tive um parto natural, isso quer dizer que não houve qualquer tipo de procedimento, qualquer intervenção em meu corpo, sem soro, ocitocina, sem episiotomia, sem forcéps, sem analgesia, sem remédios, porque foi assim que eu escolhi, mas com muita atenção, amor, acompanhamento total e integral de meu querido companheiro, oportunidade de definir a posição em que me sentia melhor,  liberdade para andar, comer, gritar sem pudores, sem restrições, sem violência. Esse ponto muito interessa a essa coluna, porque há muita violência obstétrica em nosso país e fora dele também. E violência obstétrica segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) pode ocorrer quando há abusos verbais, restrição da presença de acompanhante (que pode ser qualquer pessoa que a mulher escolher), procedimentos médicos coercitivos ou não consentidos, violação de privacidade, recusa em administrar analgésicos, recusa em prestar informações antes dos procedimentos, recusa de internação, entre outros. 

Ainda segundo a OMS, a violência obstétrica representa uma “violação dos direitos humanos fundamentais.” Fico me perguntando, será que o racismo tem um papel nisso? Eu diria que sim, infelizmente. A coordenadora-geral da Saúde das Mulheres do Ministério da Saúde, Maria Esther de Albuquerque Vilela, em entrevista a Rádio Câmara em 2015, ressaltou a existência de estudos provando que as mulheres negras são consideradas por profissionais da saúde como mais resistentes a dor, elas são também menos tocadas e mais negligenciadas do que as mulheres brancas. Isso sem contar uma série de fatores ecônomicos, sociais e culturais que atuam para uma maior vulnerabilidade das mulheres negras quando em atendimento médico. 

Eu fiz um curso para gestantes oferecido por um plano de saúde particular e me lembro de não ter visto nos slides da médica fotos de mulheres negras, fotos de bebês negros e havia diversas no curso. Cheguei a mencionar para ela e ouvi como resposta que os slides eram antigos, mas seriam atualizados.  

O momento de trazer alguém ao mundo é um verdadeiro milagre, mas são muitas as mulheres que relatam humilhações e horrores nas mãos de equipes sem sensibilidade, está aí uma palavra que sempre menciono, sensibilidade. Como tratar de alguém sem essa palavra? Durante a preparação para viver o meu parto assisti a muitos vídeos, li diversos livros sobre parto humanizado e não havia mulheres negras nesses vídeos e livros relatando seus trabalhos de parto, suas experiências. Uma amiga, negra, grávida na mesma época que eu, que desejava ter um parto normal, disse ter conseguido trazer ao mundo sua filha no banheiro do hospital, porque ao chegar disseram que ela estava exagerando, que não estava em trabalho de parto. Estão aí fundidos estereótipos, preconceitos, dominações, sim, muitas outras mulheres relatam esse tipo de tratamento, mas as estatísticas apontam que a mortalidade materna entre as mulheres negras é maior.    

Eu pari meu filho, digo pari, porque eu deixei a natureza agir, deixei que ela me conduzisse. Porque é a mulher a protagonista desse momento. Um poder, uma força estranha tomava conta do meu corpo e do meu espírito. INCRÍVEL!!!!Conectei-me a essa força. Vocalizava e os gritos se transformavam em urros, urros que nunca havia sequer imaginado ser capaz de emitir. Felizmente, ninguém me disse para ficar quieta, não sofri violência qualquer. Já não era eu mesma! Era um bicho, tinha uma força incomum, uma energia imensa. Era um bicho-mãe-mulher!!E, como tantas outras mulheres antes de mim, como muitas antepassadas, ancestrais, como a primeira mulher-fêmea-mãe na Terra eu trouxe meu filho ao mundo.