Valquíria Tenório é professora
universitária, socióloga e pesquisadora de cultura e história na temática
etnicorracial.
Ainda estou
refletindo sobre a peça “O Topo da Montanha”, lembrando constantemente de uma
fala do ator Lázaro Ramos vivendo naquele momento Martin Luther King Jr., ele
se pergunta: de onde vem o racismo? Essa questão é tão atual, tão premente. Ela
levanta ainda outra: o que é o racismo? O que é raça?
Há muita
pesquisa e excelentes textos sobre essas questões, por exemplo, os trabalhos do
professor Dr. Antonio Sérgio Alfredo Guimarães da USP, ele esteve em minha
banca de defesa de doutorado em Sociologia na Universidade Federal de São
Carlos e tem sido um nome muito importante para se pensar a temática
etnicorracial na sociologia.
Seu livro
“Racismo e anti-racismo no Brasil” é uma indicação obrigatória de leitura para
quem se interessa pelo tema. Segundo Guimarães,
raça não corresponde a uma realidade natural, mas sim a uma forma de
classificação social, ou seja, não tem qualquer validade biológica. Quando
falamos em raça não estamos falando de uma categoria biológica, porque as
pesquisas já demonstraram que não existem diferenças biológicas tão marcantes
para dividirmos a humanidade em raças diferentes, tal como se pensava
anteriormente. A “Declaração sobre as Raças” da UNESCO já em 1950 afirmava que
“os cientistas estão de acordo, de um modo geral, em reconhecer que a
humanidade é uma e que todos os homens pertencem à mesma espécie, Homo sapiens.
Além disso, admite-se comumente que todos os homens se originaram, segundo
todas as probabilidades, do mesmo tronco.”.
Estudos
como o “Genoma
Humano” de sequenciamento das características
genéticas dos seres humanos demonstrou que pode haver muito mais similaridade
entre indivíduos de grupos humanos tidos como diferentes do que diferenças
marcantes. O que existem são diferenças culturais, sociais, econômicas, geográficas,
políticas entre esses indivíduos e entre os diversos grupos humanos. No
entanto, a ideia, mesmo que falsa, de haver
raças humanas diferentes serviu para legitimar o genocídio de grupos indígenas
em diferentes partes do mundo, serviu para a escravização dos africanos e para a
dizimação de milhares de judeus e, mesmo nos dias atuais continua presente na
mente de muitas pessoas que olham, por exemplo, para a população negra e
enxergam diferenças de comportamento, enxergam um “exotismo”, uma pré-disposição
física para os esportes, maior força, maior virilidade para os homens e
mulheres, enxergam características biológicas diferenciadas que não se
sustentam cientificamente.
Muitas pessoas
falam que o racismo no Brasil é diferente daquele institucionalizado na África
do Sul e, principalmente, na região sul dos Estados Unidos, porque aqui ele
existiria de maneira sutil, velada. No entanto, nos últimos anos podemos
observar uma mudança nessa sistemática quando nos deparamos com uma série de
ataques racistas pela internet, pichações constantes em muros de universidades
públicas brasileiras, será que temos mais casos, ou apenas temos conseguido
saber mais dessas situações devido as novas possibilidades de divulgação
abertas pelas mídias sociais? Será que o fato de a população negra ter
conquistado nos últimos anos mudanças significativas, como o maior ingresso nas
universidades públicas e privadas via ações afirmativas tem colocado em xeque
uma estrutura anteriormente elaborada para receber apenas os filhos das elites
brancas e que agora tanto a universidade como a sociedade veem a população
negra em um papel diferente do idealizado para ela, o da subalternidade e
inferioridade.
Esse momento pode
estar causando um certo furor entre aqueles que foram acostumados desde o
nascimento e durante todo seu processo de socialização a entender que certos
lugares e papeis são específicos aos negros, eu explico, há pessoas que durante
toda a vida aprenderam e visualizam as pessoas negras apenas como serviçais,
sempre restritas às profissões menos remuneradas, de menor prestígio social e
sempre prontas para servir. Aprendem que não há negros em altos cargos porque
eles não se esforçam, porque não têm ambição, porque não merecem, porque não
são tão inteligentes, não são confiáveis, que só pensam em bebida e música, e
por aí vai. E o Brasil vai reproduzindo seu racismo cotidiano sem muitas
dificuldades, nasce geração, morre geração e ele continua existindo, sendo
sempre reproduzido em muitos casos aos moldes do século XIX.
O problema não
está apenas em termos a ideia de raças humanas, mas sim o fato de termos a ideia de
que haveria raças melhores, superiores, com atributos imutáveis e, por conta
disso, esses grupos teriam privilégios, poder, condições excelentes de vida e
de domínio permanente sobre os destinos dos demais. Esses grupos tidos como
superiores passam a operar mecanismos de discriminação psicológicos,
individuais e coletivos de constante inferiorização da população negra, na
elaboração de estereótipos e na manutenção das desigualdades entre brancos e
negros.
É preciso
desnaturalizarmos os papeis sociais subalternizados vinculados à população
negra e reconstruirmos novas perspectivas, novos papeis e uma nova vida. Há
muito ainda por refletirmos, continuemos.