terça-feira, 5 de abril de 2016

O Topo da Montanha


Valquíria Tenório é professora universitária, socióloga e pesquisadora de cultura e história na temática etnicorracial.


            No último dia 03 de abril, tivemos a oportunidade, meu marido e eu, de assistir a peça “O Topo da Montanha” protagonizada pelos atores Lázaro Ramos e Taís Araújo, no teatro FAAP em São Paulo. Conseguimos ver a última apresentação desta temporada e foi brilhante ter estado lá. Pude me reconhecer em grande parte da plateia de mais de 500 pessoas, éramos uma maioria negra em um teatro cravado em uma das regiões mais nobres de São Paulo e que, regularmente, ainda nos dias de hoje, não tem uma presença negra majoritária.
            As portas foram abertas com alguns minutos de antecedência e vimos no palco os dois atores recebendo a todos que chegavam com abraço, atenção e afeto. Ganhei o meu! Passado algum tempo e depois de muitos abraços, eles solicitaram que aqueles que foram recebidos com carinho e afeto passassem adiante o mesmo, acolhendo as demais pessoas que fossem chegando, pediram que nós as recebêssemos por eles. Foi a primeira vez que vivenciei uma peça de teatro em que os atores receberam o público com tamanho respeito. O próprio Lázaro disse que a peça se tratava de afeto e respeito.
            O cenário nos transportou para o quarto 306 do hotel Lorraine onde Martin Luther King Jr. esteve após o seu último discurso proferido na Igreja de Mason, em Memphis, EUA, no dia 03 de abril de 1968. Os atores bastante emocionados relembraram que, por acaso ou não, a temporada de apresentações da peça se encerrava justamente no dia 03 de abril quando King proferiu o discurso I´ve Been to the Mountaintop (eu estive no topo da montanha) que deu origem ao nome da peça. Nesse discurso Martin Luther King Jr. prevê dias difíceis, duros, mas também enxerga um futuro de glórias para os que lutam pela igualdade e justiça com amor e sem violência. Foi na sacada desse quarto que Martin Luther King Jr. foi assassinado no dia 04 de abril de 1968 aos 39 anos. Portanto, a peça tem a intenção de nos fazer sentir seus últimos momentos e reflexões.
            No palco, numa produção primorosa, passamos a ouvir e ver a chuva cair. Vemos chegar um reverendo cansado, doente, angustiado pelas decisões, caminhos e incertezas. A camareira Camae, uma mulher segura de si, extremamente inteligente e perspicaz, protagonizada por Taís Araújo chega logo depois com uma xícara de café solicitada por Dr. King e passa a travar com ele um longo debate. Ela ganha a cena e nos ajuda a visualizar um reverendo humano, com senso de humor, em dúvida sobre os rumos a seguir.
Interessante notar o empoderamento da mulher na peça, Camae em muitas de suas falas nos mostra o quanto as mulheres são invisibilizadas, o quanto não são ouvidas, a certo ponto ela diz que as mulheres negras são mulas que carregam e suportam tudo. Há na fala dela uma crítica ao movimento, mas também procura mostrar o quanto as mulheres são fortes, poderosas e capazes de movimentar céus e terras, o que fica ainda mais evidente quando King conversa com Deus e descobre que Deus é mulher e negra.
A peça não é apenas sobre Martin Luther King Jr., por vezes, vi ali a situação brasileira, do genocídio dos jovens negros, da segregação que não existe na lei, mas que se concretiza em muitas ações individuais, coletivas, em cidades como São Paulo em que a miséria tem cor e é negra, em teatros, restaurante, nos melhores postos de empregos, nas universidades onde poucos são negros. A peça referencia-se aos anos 1960, ao movimento dos Direitos Civis nos EUA, mas incomoda e faz pensar o nosso 2016, a nossa atual intolerância racial, social e política.
Ao final, Camae após explicar que estava ali como um anjo para levar Dr. King para casa, diz a ele que o bastão precisava ser passado para outras pessoas, que também continuariam a luta dele. Esse momento é de arrepiar, com a projeção de várias pessoas que têm atuado firmemente na luta cotidiana contra o racismo no Brasil e no mundo. Uma homenagem linda ao passado e presente.
“O Topo da Montanha” é com certeza uma peça que precisa ser levada para outros lugares do país, precisa ser discutida. Os atores ao final bastante tocados pela energia que a peça levanta, despedem-se com carinho da plateia e mencionam que a projeção de imagens de pessoas que continuam passando o bastão não está completa, eles nos pedem que nós destaquemos aqueles e aquelas que julgamos passar o bastão e que devem ser lembrados. Foi com esse intuito que deixei registrado no livro o nome de muitas mulheres negras araraquarenses que têm passado o bastão ontem e hoje.