terça-feira, 27 de setembro de 2016

As cercas andam de madrugada

Valquíria Tenório é professora do IFSP campus Matão, doutora em Sociologia e pesquisadora de cultura, história e educação na temática etnicorracial.

Você pode estar se perguntando, como assim? Como cercas podem andar? Que cercas? Novamente, estou me referindo ao curso de formação de professores que está ocorrendo no IFSP, campus Matão, “História e Cultura Africana e Afrobrasileira”. Estou me referindo mais especificamente a oportunidade que tivemos de ouvir a amiga e professora doutora Vera Rodrigues da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira).
“As cercas andam de madrugada” foi uma expressão que Vera ouviu ao realizar trabalho de campo em uma comunidade quilombola no Rio Grande do Sul. Segundo ela, as pessoas entrevistadas “diziam que uma tática de expropriação do território usada pelos fazendeiros era avançar as cercas sobre as terras na madrugada. No dia seguinte eles (quilombolas) não tinham o que fazer. A cerca marcava a ideia de propriedade. Inclusive com isso, eles ficavam com menos espaço para o gado, plantio e acesso à água. Era uma forma de coação. De ir minando direitos e sonhos.”
A retirada de direitos é algo que temos vislumbrando e vivenciado nos últimos tempos de maneira bem evidente, no entanto, diversos grupos sociais já vivem essa realidade de longa data. E quando falamos em posse de terra, nos deparamos com um terreno bastante conturbado, principalmente, se pensarmos que a abolição da escravidão não previu reparação aos ex-escravizados, não houve ressarcimento, não lhes foram dadas condições substanciais de manutenção de suas próprias vidas. Parece-me que a tática sempre foi a de minar as lutas e expropriar. Afinal, a terra é um bem muito valioso e não houve uma estratégia política, de Estado para que os ex-escravizados tivessem acesso a ela, o que vimos foi o contrário.

Vera nos fez refletir sobre o conceito de quilombo, pois este foi compreendido pelo Conselho Ultramarino em 1740 como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. O que aprendemos nas escolas ainda está bastante vinculado a essa visão, mas é preciso pensar para além da ideia de luta e fuga. É importante sabermos que há um trabalho relevante de diversos profissionais e pesquisadores, juntamente com as comunidades para levantar, mapear e reconhecer diversos quilombos que existem até os dias de hoje numa perspectiva menos fixada e antiquada, mais voltada para a configuração desses lugares como espaços de resistência de grupos que se estabeleceram em determinadas localidades, criaram modos particulares de vida em diálogo com o mundo exterior e resistindo para manter seus sonhos, seus lugares e suas cercas.